sobre o livro "Tanto tempo para aprender a escrever um poema com hortênsias", de Clarisse Lyra


O livro de estreia de Clarisse Lyra, Tanto tempo para aprender a escrever um poema com hortênsias (publicado pela Jabuticaba, com capa de Tâmara Lyra), está cheio de mistérios - e, ainda que todos eles pareçam estar atrelados à materialidade das coisas (dos pães, do arroz, do feijão, dos animais domésticos, do café, dos livros, dos cigarros etc.), todos eles também parecem tratar com certa desfaçatez a materialidade das coisas. Há um equilíbrio raro nessa equação que permite à poeta (e também tradutora) de Feira de Santana alçar certos voos oníricos (com um caráter iniciático - e se poderia dizer até que religioso, embora sem o peso, o compromisso e a seriedade das religiões) sem nunca se descolar propriamente do chão e do cotidiano - e é isso, aliás, que faz com que o livro se destaque em meio a uma produção contemporânea que por ora se perde em busca da imagem que não se sabe se é surrealista ou meramente aleatória (no que a aleatoriedade tem de fraqueza e gratuidade), ora se prende à simples descrição cotidiana dos dias e das noites (no que a descrição cotidiana dos dias e das noites tem de desinteressante e pouco consequente). "quem me roubou o sono roubou-me o sonho/ sonhar oráculos previsões", por exemplo, são os versos que abrem o poema "Quem me roubou" (um dos mais impressionantes do livro), em que sonhos oraculares e premonitórios se perdem porque primeiro se perde o sono - e há poucas coisas mais cotidianas, hoje, do que a experiência da insônia (devido ao quê? trabalho, falta de trabalho, dívidas?). É óbvio que este traço está longe de ser o único a se destacar no livro, mas - ao menos na minha leitura - parece ser aquele que organiza todos os outros. Num poema como "Ontem na China", dá pra notar esse procedimento se realizando plenamente: "ontem na china choveu/ polvos e estrelas do mar/ é uma coisa que acontece/ tem explicação científica/ e narrativa bíblica", começa o poema, descrevendo uma cena fantástica e embasando-a tanto com a ciência quanto com a Bíblia; à cena fantástica (situada longe), se segue o trabalho de lidar com uma chuva tão inesperada: "por um momento/ é só espanto/ mas no final/ os bichos todos morrem/ e são recolhidos pela/ administração municipal"; o poema se fecha com uma observação que se justifica certamente pelo desfecho da chuva: "o maravilhoso/ tem também/ sua crueldade", revelando uma consciência sobre a sua matéria que certamente garante a destreza de Clarisse ao manejar os seus mistérios (não por acaso um Dr. Mistério é ridicularizado: "O que é que há, Dr. Mistério, o que te aflige?/ Acaso é o medo de que/ tuas metáforas/ não saciem o apetite/ pelo sonho?"; por outro lado, quem briga "com Mistério", casa "com Controle", não resiste "à tentação do sentido", encontra "com Verdade" e falha "com Promessa" acaba passando por apuros, como é o caso de "Minha amiga Vera"). Voltando ao poema "Ontem na China", no entanto, ali pelo meio, após se referir à ciência e à Bíblia, a poeta faz menção a um filme de Paul Thomas Anderson (imagino que Magnólia), algo que me parece fundamental para de fato entender como o procedimento se realiza, como a maquinaria onírica das experiências se ajusta ao poema: Clarisse tem um senso raro ao lidar com a poesia enquanto um trabalho de ficção. Isso possui uma série de implicações, que vão desde a elaboração de imagens que fazem pouco caso das expectativas do leitor até uma atenção cada vez mais rara, na poesia contemporânea, à construção e elaboração de versos e não meramente de frases (os enjambements são poucos, as vírgulas são inusitadas, muitos versos se distanciam da ficção enquanto prosa - outro despenhadeiro em que muito da poesia contemporânea acaba caindo - através da aparente desconexão entre eles - aparente porque não é que falte conexão, é que a conexão é de outro tipo, como se os conectivos tradicionais atuassem contra o maravilhoso e fosse preciso criar outros -, respondendo mais aos ritmos do que à necessidade de deixar uma mensagem clara, contar uma história claramente). Ainda assim, Clarisse conta e reconta histórias - e o poema "Felisberta sonha e tem pesadelos" mostra que a poeta faz isso com maestria e delicadeza:

felisberta sonha e tem pesadelos
eu sei porque ela
se agita e às vezes
rosna às três da manhã.
contam que em tempos primordiais
há muitos e muitos
anos, caiu uma gota
da tinta do céu
que havia sido havia
pouco pintado.
veio um chow chow
e lambeu, manchando
assim sua língua
e a de seus descendentes.
com que será que sonha
quem tem por dentro da boca
um pedaço do começo
do mundo?
a escuridão
de antes das estrelas.


Há que se atentar para o fato de que, ainda que esteja contando uma história, narrando uma espécie de mito, a poeta atrai o leitor sobretudo pelos sons (fala-se da língua manchada do chow chow, um nome particularmente engraçado e que repercute de forma singular - e bem - em ouvidos brasileiros, tão bem aproveitado pela poeta) e pela criação de ritmos inesperados através de cortes igualmente inesperados nos versos e num uso singular da repetição: "(...) caiu uma gota/ da tinta do céu/ que havia sido havia/ pouco pintado"). E é um poema em que o animal doméstico se torna uma espécie de ser mitológico e maravilhoso através da observação do seu sono inquieto (a poeta a observa às três da manhã, talvez com insônia) e da indagação em torno do seu sonho. O sonho oracular, no entanto, vai em direção ao passado - um passado, afinal, tão desconhecido e misterioso quanto o futuro. Algo semelhante acontece em "Bolinhos", no qual se descreve uma cena familiar: "minha mãe uma vez/ amassou num prato feijão arroz/ abóbora e farinha, fez bolinhos/ com a mão e nos deu de comer na boca. 'um bolinho pra tami um bolinho pra cacá/ um bolinho pra mim/ lá no zuca a gente comia assim'". Quando as filhas querem repetir a experiência, a mãe diz apenas que "não podia comer bolinho todo dia" - até que a mesma cena volta a acontecer: "'lá no zuca era assim que a gente comia'". Uma espécie de passado desconhecido, no qual certamente se guarda um segredo ou um mistério (por que não se pode repetir essa espécie de ritual com mais frequência?) na partilha desse bolinho cujo acesso é barrado tanto às filhas que estão no poema quanto aos leitores (e afinal, o que é "o zuca"?). No entanto, é na direção contrária que caminham aqueles que me parecem ser o ponto alto deste livro, que são dois poemas com um mesmo título: "E, amiga, eu tô no futuro". Dispostos lado a lado, os poemas evidenciam um trabalho e um retrabalho detido sobre a linguagem e as imagens - os dois circulam num mesmo imaginário e num mesmo campo vocabular, apresentando diferenças sutis (um dos poemas tem 25 versos, o outro tem 27): no primeiro poema, por exemplo, "o futuro tem mistério e pequenos vidros/ embaçados"; no segundo, "o futuro tem mistério" (do primeiro ao segundo, é notável uma redução do uso de adjetivos - "um moço bonito (...)" vira só "um moço" - e de descrições mais longas das visões: "passeios ao léu pelas ruas da cidade desconhecida" se torna só "passeios ao léu"; muito embora no segundo poema seja introduzida uma imagem poderosa cujo equilíbrio diz muito do que venho tentando perseguir no livro de Clarisse: "pneus de cristal"). Este futuro que a poeta visita - certamente em sonho? - tem um tom ameno: faz algum frio, as pessoas são quietas, os animais são afáveis, não há medo, agonia, apreensão ou sequer lascívia, embora exista o amor e ele seja doce e perfumado: "o amor é doce e perfumado" é um dos poucos versos que se repetem nos dois poemas. Ao final do primeiro poema, se lê, sobre o céu do futuro, que ele "tem a coloração das maçãs" - enquanto que, no segundo, o que se diz é que ele "se disfarça de maçã", saindo da passividade de ter determinada cor para o papel ativo de se disfarçar tal como queira, como se houvesse um aprofundamento tanto da experiência onírica de observação desse céu (que cria vontade) quanto da experiência de escrita desse poema, assumindo a um só tempo a sua face misteriosa e maravilhosa (afinal, um céu está se disfarçando) e aquilo que ele guarda de trabalho de escrita e sobretudo de reescrita constante, revelando que, na poesia de Clarisse, a reescrita é entendida também como uma oportunidade para reimaginar as coisas, os mistérios, os poemas. O maravilhoso e o mistério aparentemente guardam, para a poeta, um sentido novo para o trabalho - e é isso que ela oferece por meio da sua poesia: novos meios, formas novas, alguma outra coisa.