Sobre Lucrecia Martel, o tango "Muchacho" e o poema de amor


Outro dia eu disse no Twitter que iria escrever um livro sobre como o poema de amor é a forma artística mais influente e bem sucedida da nossa época, uma espécie de espaço central da expressão da classe trabalhadora nos tempos mais avançados do capitalismo, sobretudo a partir do momento em que culminou no que se chama de canção de amor ou canção romântica, se multiplicando incontrolavelmente no meio das fórmulas da música pop (seja ela internacional como o bolero, que atravessa toda a América, ou nacional, como o quase indefinível brega, onde também o internacional bolero se nacionaliza e regionaliza). Baseava a coisa na fala de um operário francês (resgatada pela minha querida amiga Fernanda Morse, de pena e cuca das mais brabas, que achou a coisa numa matéria sobre uma pesquisa realizada na França em 1968 que indagava as pessoas acerca da "importância do amor") segundo a qual o tal, o amor, é "a única aventura que nos resta"; embora não seja a fala ou a letra de nenhum filósofo ou teórico da literatura, aquilo me parecia forjar uma nova relação entre lírica e épica. Para florear, eu disse que ia usar Badiou pra me explicar, me referindo a citações como esta, longa demais para o Twiter, do texto "Poesia e comunismo" (aqui em tradução de Ana Martins Marques e Daniel Arelli, publicado na revista Ouriço): "Assim, a poesia comunista é não apenas poesia épica do combate, poesia histórica do futuro, poesia afirmativa da confiança. Ela é também poesia lírica do que o comunismo, figura da humanidade reconciliada com sua própria grandeza, terá sido após a vitória, e que, para o poeta, já é pesar e melancolia assim como 'fome de sua alma', tanto passado quanto futuro, nostalgia e esperança". De repente, umas pessoas começaram a me enviar músicas (uma da Timbalada, um ou outro bolero, e lembrei tanto do magnífico piseiro em em que Vitor Fernandes canta "cair numa disputa não dói/ dói é sofrer por morena" quanto do fato de que a canção de amor muitas vezes também resiste por meio da oposição ao trabalho, como naqueles versos de Vital Farias: "trabalhar é minha sina/ eu gosto mesmo é d'ocê") pra me ajudar na coleta de material pra sustentar minha tese fictícia. Segui caçando outras fontes, outros exemplos, lembrei das variadas "amor de pobre" escritas e cantadas em português e castelhano - mas foi por acaso, sem procurar nem pensar nisso, que escutei "Muchacho", tango composto por Edgardo Donato com letra escrita por Caledonio Flores. No caso, eu estava assistindo ao Terminal norte, de Lucrecia Martel, um filme surpreendente mas também estranhamente familiar, no qual há uma cena em que a diretora registra Julieta Laso (que também é sua namorada) cantando a canção, o tango "Muchacho", acompanhada de um violão apenas. A cena é linda: Martel registra a coisa toda com uma sensibilidade impressionante, sem exageros, confiando apaixonadamente na imagem e no som de Laso, que canta com ironia os versos que são a um só tempo canção de amor romântico e de protesto anticapitalista. No poema, o que se ouve é um ataque a um jovem burguês que é incapaz de amar - mas não é um problema dele, e sim da sua classe: na canção, o que se diz é que a relação burguesa em que a medida de tudo é o dinheiro e a propriedade privada impossibilitam a experiência amorosa: fala-se de um rapaz que vive bem, que por "sorte" mora num "palacete central", e "que pa' vicios y placeres,/ para farras y mujeres/ disponés de un capital", mas que não conhece o encanto "de haber derramado llanto/ sobre un pecho de mujer" - ou seja, fala-se de alguém cujas experiências supostamente amorosas são mediadas pelo dinheiro, e que portanto não são amorosas. E, como o amor é impossível para ele, por tabela também se tornam impossíveis a poesia e a experiência da canção de amor (neste caso específico, do tango e dos seus instrumentos: por isso o rapaz não perde a calma diante de uma canção do gênero e nem a sua alma chora "cuando gime un bandoneón"), sendo logo questionado se alguma vez "bajo la luz de na luna/ o si no bajo un farol,/ no te has sentido poeta" (destacaria ainda os versos bonitos em que se pergunta se o rapaz conhece a "doce policromia" das tardes do subúrbio quando passam as operárias). De uma só vez, a canção Edgardo Donato e o poema de Caledonio Flores excluem os burgueses do amor, da canção e da poesia. Terminal norte foi gravado durante a pandemia de COVID-19, experiência cuja magnitude sem dúvida repercutiu e seguirá repercutindo na ideia que fazemos de coisas como o amor e a poesia, e registra uma série de conversas e cantorias entre artistas argentinas; embora apareçam homens, apenas as mulheres cantam, e ouvimos trap, noise, tango, coplas e outros gêneros populares. Que uma canção chamada "Muchacho" apareça neste contexto não me parece que seja uma coisa gratuita, sendo muito possível que Martel encontre nela, a um só tempo, uma posição política de classe muito bem demarcada e (por conta justamente do contexto em que aparece) uma posição relativa à questão de gênero apontada não apenas para a burguesia, já que se poderia dizer que "Muchacho" também reproduz uma certa ambiguidade no que diz respeito ao lugar da mulher nesta tradição da canção romântica (muito embora o espaço da canção de amor esteja longe de ser marcado apenas por padrões de heterossexualidade masculina, abrindo-se cada vez mais, inclusive, ou por letras e vozes de homens, ao contrário - basta apontar para o fato de que a grande figura da canção de amor no Brasil dos últimos anos foi Marília Mendonça). Com as canções de amor que cantam em Terminal norte, seja em volta de fogueiras ou caminhando pela mata, Martel e as outras artistas (como a coplera Mariana Carrizo; Noe, pianista e compositora; Lorena Caranchay, "a primeira coplera trans dos Vales Calchaquíes"; B Yami, cantora de trap, entre outras) parecem reafirmar justamente isso: que o amor (e as suas elaborações via poesia e música) não param de se reinventar e se abrir - e que esta é uma espécie de tarefa para o poeta e para todos os que amam em meio ao sofrimento de viver num mundo em que não se realizou aquilo que, no dizer de Badiou, define o comunismo (e a poesia): "Um amor tenso, paradoxal, violento, pela vida comum. O desejo de que aquilo que deveria ser comum, acessível a todos, não seja apropriado pelos servos do Capital. O desejo poético de que as coisas da vida sejam como o céu e a terra, como a água dos oceanos e o fogo na mata numa noite de verão, isto é, pertençam por direito a todo mundo". Trata-se, como se vê, de uma tarefa épica, digna de uma (outra vez segundo Badiou) "epopeia muito particular: a epopeia da exigência mínima, a epopeia do que não é jamais extremo nem monstruoso. A poesia comunista, com seus recursos de doçura combinados com seus recursos de entusiasmo, nos diz o seguinte: levantem-se para querer, pensar e fazer que o mundo seja oferecido a todos como o mundo que pertence a todos, como o poema oferece a todos, na língua, o mundo comum que está sempre aí, mesmo que em segredo". O que o filme de Lucrecia Martel faz é justamente oferecer - visual e sonoramente - a oferta da poesia, aquela que dá "uma prova do comunismo através do poema", e aqui também do cinema, um cinema que usa recursos de doçura combinados com recursos de entusiasmo para nos lembrar, em meio a uma pandemia que matou tantos e traumatizou todos, que "a doença e a violência estão do lado do mundo capitalista e imperial tal como ele é". Dá até pra lembrar daquela famosa de Guimarães Rosa, que não era comunista mas era poeta, lá do Grande sertão: veredas: "Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura".