sobre alguns poemas de Maria Dolores Rodriguez


Pra começo de conversa, a poesia, neste poema de Maria Dolores Rodriguez, é muita coisa: é ligação profunda com o território e também vontade de deixá-lo - pés no chão, pés sem chão; é provocação à cidade (selva doméstica) e ao cachorro manso (animal domesticado) - a poesia rosna para ambos; é fuga da morte, mas também proximidade da morte - ora há que se esconder da indesejada, ora há que se marchar para o abismo, no rumo dela; é pouco caso de uma realidade e de uma alteridade também domesticadas - desdenha de uma ilusão de igualdade e cala as supostas ou pretensas verdades (uma poesia profundamente avessa a leituras paternalistas ou complacentes); e é, sobretudo, ao menos na minha leitura, uma experiência particular da roça (cujo traçado humano se perde de vista), na qual o milharal que o homem planta e organiza se transmuta o bastante para que alguém se perca dentro dele e experimente a sensação do mato virgem mesmo, embolando-se entre as plantas. Há aqui uma aposta alta na poesia - que não é cultivada como um espaço perfeitamente discernível ou controlável, uma espécie de jardim ou playground mental cuja função é distrair ou ilustrar. É uma experiência que só pode ser radical:

            A POESIA:

            manter
            os pés no chão

            enroscar a verdade,
            emudecê-la

            se esconder
            da experiência de morte

            rosnar para a
            cidade e seus signos

            marchar em direção
            a um penhasco
            cambaleando no escuro

            perder de vista
            o roçado e
            embolar-se em
            um milharal

            começar pelo fim

            desdenhar do vulto
            de igualdade

            rosnar para
            um cão manso

            não alcançar o chão

Pra seguir a conversa, o poema, na poesia de Maria Dolores Rodriguez, não é o bastante - não é quase nada, aliás. Em comparação com forças como a força das cobras corais da Chapada Diamantina, do sal marinho e de um afoxé, os poemas são coisas pequenas - coisas que, no entanto, mesmo pequenas, seguem sendo feitas pela poeta (aqui, me lembro dos grandes versos que abrem o poema "Coração pequeno", de outro autor baiano, Carlos Arouca: "deus é para quem é supremo/ deixa eu aqui/ com o meu coração/ pequeno"). Diante das tragédias urbanas de fundo evidentemente racial, o poema não serve pra quase nada: não "levanta muros/ constrói casas ou/ interrompe a chuva" que provoca os deslizamentos nas encostas de Salvador. O poeta, ao contrário do que propunha Nicanor Parra num famoso manifesto seu, não é um pedreiro - a não ser metaforicamente, em provocações internas ao mundo quase sempre fechado da poesia e da literatura: o poeta não é um pedreiro. Por outro lado, também não é um demiurgo (como era para Vicente Huidobro, que estava na mira de Parra) capaz de interromper e controlar as chuvas (lembremos: deus é pra quem é supremo - e um combate das supremacias é o que se promove aqui, neste tom distinto de poetas que são deuses ou de poetas que simulam ser trabalhadores). Nenhuma ilusão nestes versos de Maria Dolores Rodriguez - mas também nenhuma entrega a uma pura imanência mundana (já que a palavra, para ela, é um egun) ou a uma simples inércia (já que alguma revolução - aquela contra supremacias, por exemplo - informa grande parte dos seus versos). Qual, então, o seu lugar diante dessas forças da natureza que se abatem sobre a cidade (e a poesia, aqui, já sabe qual a verdadeira causa dos desastres, chamados equivocadamente de desastres naturais)? Sendo coisa pequena, sem grandes poderes, o poema aparece cheio de possibilidades (há certamente, nesta poesia, uma proposição inovadora para ler as divergências entre o poder, aquilo que se detém, e o poder, aquilo que é possível): aparece, por exemplo, como uma via para embolar - perder-se numa experiência genuína na roça de milho verde (um espaço fundamental do candomblé) e bolar outras tramas, a um só tempo pequenas e vastas. "Começar pelo fim" - mais do que lidar com as contradições, criá-las e jogá-las no mundo, na cara de quem pensa estar acima delas.

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Os poemas de Maria Dolores Rodriguez estão AQUI e AQUI.