sobre "Cerco", de Tazio Zambi

 


É evidente que a poesia de Tazio Zambi é minimalista. Você abre o livro e, ainda antes de ler, vê que os versos são curtos, concisos, pequenos, mínimos (às vezes um verso é só um "&"). Por outro lado, os espaços em branco são enormes (e por isso mesmo, por serem enormes, não são simplesmente vazios - ou seja: talvez a coisa não seja tão minimalista assim). Vale dizer, ainda, que os poemas de Tazio não trabalham esse espaço pelo deslocamento dos versos na página, não ampliam e dispersam a mancha, já que todos eles são apresentados na disposição tradicional, justificados à esquerda - o poema não brinca e nem luta contra a página em branco, antes a atrai.

Seu livro Cerco foi publicado num já longínquo e quase irreconhecível 2013 e guarda, neste título, alguma chave a respeito de si mesmo. É um livro geograficamente localizado, uma espécie de mapa de uma cidade (Vitória) que na verdade é um deserto, onde se elabora um projeto para uma revolução: "alegria/ esse silêncio// de paredes/ sem saída// postes/ cegos pelas// ruas/ um isqueiro// &/ gasolina" (a revolução no deserto é um tema de eleição dos latino-americanos - vide o caso dos estridentistas, depois revisitados por Bolaño -, uma formulação utópica curiosa que tanto parte da visão colonial do continente americano como deserto a ser civilizado quanto do desencanto moderno de tendências meio apocalípticas).

Os poemas são cercados e ajustados a alguns limites, dados pelos espaços em branco, que são densos; os poemas são pequenas ilhas - e a ilha, como lemos num deles, é "um// pedaço de terra// cercado por// portos// por// todos os lados". O vazio, o espaço em branco, portanto, é um ponto para a fuga, para a viagem: é onde a aventura começa - não exatamente depois do poema, mas no meio dele mesmo, a um só tempo emperrando e empurrando algo que se diria "poesia".

Tazio também é um pesquisador das máquinas digitais (Cerco, além de livro, é uma web-instalação), interessado sobretudo em suas falhas, no glitch - maneja as sucatas, os espaços em branco (ou, ao contrário, tão saturados de cores e informações que sofrem distorções) da programação. Isso quer dizer o seguinte: Tazio Zambi é um poeta lidando, em 2013 (agora também), lá de Alagoas, com certos legados de certas vanguardas (poemas concretos, poemas em processo etc) cujo norte (um deles, ao menos) era uma ideia de rigor, alcançável pela redução de uma suposta voltagem lírica e pela tomada de uma via meio matemática, meio visual, meio maquínica (sem futurismo, no entanto).

A epígrafe de Cerco, por sinal, é esta aqui, de Edgard Braga: "máquina como quem quer desfazer/ costura de coisas no papel branco", o que diz muito mais sobre o que tento dizer um pouco aqui. Uma máquina de descostura. Mas Tazio lida com isso depois que o trânsito que conduz a linguagem à máquina se acelerou e entrou em curto-circuito, em pane (sua cobertura visual do célebre 7x1, aliás, leva esse nome: "pane") – e depois que se descobriu que a máquina ficava viciada, enferrujava, podia virar um trambolho linguístico sucateado e nos bombardear de volta com uma versão fantasmagórica e perigosa da nossa fantasia de liberdade virtual sem emancipação real (de 2013 pra cá, do Cerco pra cá, aliás, a deterioração foi assombrosa, o cerco se fechou ainda mais).

A linguagem de máquina, afinal, também pode aparecer sem nenhum rigor, frouxa de forma e de conceito (porque não opera por forma ou conceito, mas por multiplicação e alcance) – e, ainda assim, ser assimilada acriticamente pela poesia por conta do seu eterno e reatualizado medo de parecer uma coisa antiga, um medo que, por sua vez, a envelhece sem piedade (lembro de quando todo poema tinha que ser um post e parece que isso faz séculos). Afinal, se a atualização e a relevância de qualquer poesia contemporânea estão baseadas na assimilação e na reprodução diretas da linguagem contemporânea, pra que fazer poesia contemporânea?

Ao analisar o papel de ideias como "novidade" e "novo" numa cultura que resista ao capitalismo neoliberal (ele mesmo um grande produtor de novidades e de novos), Mark Fisher observa que "É importante contestar a apropriação capitalista do 'novo', mas reivindicar o 'novo' não pode ser confundido com uma adaptação às condições em que nós nos encontramos - já nos adaptamos bem demais. De fato, a busca por uma 'adaptação de sucesso' é a estratégia por excelência do gerencialismo" - é justamente esse desejo acrítico de adaptação de sucesso que move certa poesia contemporânea, ávida por afirmar a sua contemporaneidade por meio da adoção direta de símbolos, mecanismos e linguagens dos circuitos culturais de massa (sobretudo digitais e cibernéticos: poesia como meme, poesia como mensagem trocada por aplicativos etc.).

Mas eu dizia: a poesia de Tazio se passa depois disso tudo - e é consciente disso tudo. Em nenhum momento ela cai no espaço fácil da reprodução meramente conceitual (que, como diz Franco Berardi, é meio que a face do capitalismo financeiro e predatório no âmbito da arte, perfeitamente ilustrada por figuras como Kenneth Goldsmith e ideias de escrita não-criativa, símiles da especulação, espécies de escritas rentistas e parasitárias que, um século após as vanguardas artísticas, apresentam-se ainda como novidade no campo literário, sabe-se lá como). E, sobre o rigor, está lá no "B.O.", do próprio Cerco: "alguém me escreve enquanto o escrevo/ me sacaneia// sugere liberdades como a de escrever/ sugere liberdades como a de escrever// e pixou no muro de casa/ o rigor da composição está em incorporar a flexibilidade". "Flexível" é um adjetivo mais adequado para descrever os versos de tazio - que, pela concisão, talvez pudessem soar menos maleáveis e mais duros. Mas é o contrário: os versos curtos e rápidos são como saltos ou dribles. Passos de dança.

E Tazio tem um livro inédito de boleros. Sim: o poeta rigoroso e minimalista escreveu uma série de poemas ao ritmo desse gênero romântico e popular que ouvimos nas noites quentes tomando coisas fortes e lamentando algo. E o caso com a música é sério: Tazio já apareceu como letrista em discos de Ava Rocha ("Assumpção"), Negro Leo ("Makes & Fakes") e Bruno Schiavo ("Lambada").

Essas três canções são excepcionais (como são a maioria dos boleros e outros poemas que ele tem publicado desde o Cerco em revistas e sites pessoais):

1. A terceira ("Lambada") é uma potente descrição da fragilidade diante e da cumplicidade de tudo com a violência (representada pela cavalaria da polícia militar e pelo bombardeio iluminando "minha coleção de esculturas/ em palitos/ d fósforo");

2. A segunda ("Makes & Fakes") volta ao papo anterior da máquina e é um dos raros trabalhos que encara com criatividade e coragem a linguagem saturada das redes sociais sem se submeter a ela (isso que se torna a cada dia mais comum, muito embora seja cada vez mais evidente também que esse expediente está fadado a um fracasso retumbante provocado por uma falta de consciência de que a força de um texto poético reside em algum tipo de embate com a linguagem corrente, sobretudo ela estando cada vez mais cooptada por um difuso e abstrato imaginário financeiro e neoliberal que se concretiza no nosso cotidiano primeiro atônito, mas logo disposto a abraçar qualquer produto como símbolo do novo que só pode ser bom, ou ao menos engraçado e viralizante - e o embate não significa vitória: pode ser o registro da derrota também). Por outro lado, “Makes & Fakes” se faz sem fingir que essa linguagem não existe no horizonte de uma comunicação cada vez mais precária, mas também cada vez mais incontornável ("só sei q ninguém sabe/ vale o remate/ tudo existe/ para acabar/ em/ lacre"), e nem ignora a sua relação com a violência e o descalabro geral ("solitárias/ tretas/ tratores sem/ metas/ escavando/ ao léu"). Aliás, os tratores e as polícias, centros gravitacionais da língua e da vida brasileiras, já apareciam com força em 2013, no Cerco. E seguem: mais recentemente, num dos boleros, Tazio canta o "cio dos tratores" e num outro poema publicado online, "ensaio", nos diz que está "tudo tranquilo/ exceto por aquela gravação da aracy de almeida// girando na vitrola/ como um pneu de trator".

3. E a primeira ("Assumpção") aponta para uma filiação (na falta de palavra melhor) que nos ajuda a situar essa poesia: Tazio faz poemas minimalistas para serem cantados como Itamar Assumpção cantava os dele. É, afinal, outra vanguarda que entra na conversa - esta, no entanto, situada no campo da canção popular, onde os boleros de Tazio, com ironia mas também com paixão, querem se inscrever. Cerebral e rigorosa, empenhada na máquina (na sucata), no digital (no glitch), a poesia de Tazio também tem uma queda para certas ideias velhas - tais como a ideia velha de beleza, que aparece em imagens novas como "breve tumulto/ de cílios// inesperado o dia nasce// azuis/ de garrafas de sidra// competem com o mar dos postais/ do Caribe"; ou num outro bolero, em que se fala "encontro seu nome/ nos uivos// convulsos/ do sol poente". O rigor da composição está em incorporar a flexibilidade: o que esse verso diz, os outros versos fazem - e a poesia de Tazio salta entre as frustrações e as alegrias da vanguarda e da velharia, da cabeça e do coração (neste sentido, lembro da máquina de escrever imagens de e.e. cummings, ou do coraçãocabeça de Augusto de Campos). Pra mim, é uma poesia que diz muito sobre a nossa linguagem (por tabela, sobre a nossa realidade e a nossa virtualidade, e sobre já não sabermos o que é nada disso, se é que algum dia soubemos - meu palpite é que Tazio palpita que: não, nunca soubemos).