sobre "Fliperama", de Fabiano Calixto

 


Tive a sorte de ser convidado e o prazer de escrever a apresentação para o Fliperama, livro de  Fabiano Calixto publicado há alguns meses. Volto a ele tentando contrariar uma tendência já consolidada na circulação e recepção da poesia, a saber, a adoção da dinâmica do "recebido" típico das redes sociais, sobretudo do instagram, que consiste mais ou menos em comprar o livro, fotografá-lo, selecionar dois ou três versos, marcar o autor e nem ver a postagem sumir no turbilhão de más notícias e de memes - abdicando de qualquer convivência mais demorada, e já ansiosos pelo próximo volume a se fotografar (é verdade que, embora marcante nas redes sociais, essa já era uma dinâmica comum ao jornalismo cultural antes delas - quantas bandas eram as bandas que, em certa semana, revolucionavam o rock ou a música pop? quantos filmes eram "o filme do mês", como se o espírito das empresas estivesse definitivamente assentado na crítica cultural, que agora dispensava às obras o tratamento que se dispensa aos funcionários exemplares?). Volto, além disso, porque reli o Fliperama recentemente e porque os limites de uma primeira leitura e de uma apresentação são grandes (como também é grande este livro).

Lá na apresentação, tentei dialogar no mesmo tom: sabia que era um livro escrito em volume alto. O heavy metal (que segundo o autor - que prepara uma enciclopédia em alguns volumes e milhares de páginas sobre o gênero - é a maior invenção da história da humanidade) é um lance incontornável no livro - ele não está ali apenas como tema e referência, a sua história e a sua forma aparecem no modo como os poemas são escritos, naquilo que ele evoca ou cria e no modo como evoca e cria. E, mais amplamente, na ambientação suburbana e apocalíptica que envolve todos os versos. A trajetória do heavy metal - de manifestação juvenil suburbana e operária no coração da indústria cultural, com tendências provocativas ao satanismo, à marginalidade, ao barulho e ao abuso de drogas, irresponsável até a medula, até a sua consolidação como uma subcultura de viés conservador (dando crias abertamente neonazistas) que exige, por tabela, uma "resistência" (essa palavra gasta) significativa por parte dos seus integrantes antifascistas - essa trajetória, enfim, esclarece muito o caminho acompanhado e deplorado pelos poemas de Fliperama: inocência e potência redundando em culpa e derrota.

Particularmente, nunca me meti com heavy metal (excetuando-se aí o som do Black Sabbath, que me assombrou com "Paranoid" no começo da adolescência) - minha turma era outra, até meio rival, distinta em termos de música mas semelhante no que diz respeito à trajetória (para aqueles ligados ao punk rock, o heavy metal era pura firula - mas, ainda que a relação entre os dois campos fosse pautada pelo ganguismo e pela porradaria, suas complicações políticas e estéticas eram semelhantes: a voragem do pop e o extremismo pendendo para a direita eram ameaças comuns). Na resenha sobre Fliperama escrita por Marco Aurélio de Souza aparece um alerta muito verdadeiro: o livro exige que o leitor detone alguns cercadinhos, sobretudo os cercadinhos poéticos, literários e acadêmicos - cujas relações com a música chegam ali até, no máximo, a obra de Chico Buarque, ignorando que a formação poética de autores como Fabiano Calixto se dá, inicialmente, via canção cantada numa língua que sequer se compreende (as velhas revistas com letras traduzidas foram uma escola - não necessariamente boa, mas que escola é boa?). Ao que parece, há um fosso quase intransponível entre o sentimento, a história e o desejo que formam um livro como esse e a realidade de uma literatura ou de uma leitura urdida numa ideia burguesa de cultura como conforto (de preferência regada a café num café, a versão hipster contemporânea sudestina - com evidente viés de classe - daquela descrição de Teixeira Gomes ao falar de uma absurda cena literária da Bahia no começo do século XX, na qual predominavam "o marasmo, o espírito estático do academicismo, que se comprazia em cultivar a literatura como um luxo do espírito (...) ou como simples divagação lírica ou boêmia, no encontro ameno dos literatos aconchegados nos cafés (...)" e na qual se vivia "no embalo dos saraus da literatura do cafuné, dócil, sonolenta e doméstica, vestida de pijamas e chinelos após a rotina burocrática das repartições"). Não há a menor chance de, num cenário desses (devidamente atualizado, agora munido de redes sociais e macbooks, por exemplo), a poesia metaleira e proletária de Fabiano Calixto interessar (ainda mais sendo um livro independente, e independente de muita coisa, inclusive dos orçamentos e da influência das grandes editoras e seus caminhos abertos nas páginas críticas tornadas páginas de divulgação) - o que é um bom sinal.

Lendo a obra de Calixto cronologicamente, nota-se que ele mesmo vai se livrando dos limites impostos por um presente literário ao mirar um passado metaleiro - uma libertação que se deixa ver mais claramente a partir do Nominata Morfina (pra mim, o grande livro da década passada) e que se consolida radicalmente neste Fliperama. O curioso é que essa dinâmica de presente/passado se revela na sua visão de futuro, de um horizonte distópico em que replicantes e mutantes cabeludos vestidos de couro caminham pelo centro de São Paulo (rebatizado como "Trevas de Abbadon"). A violência que os melhores grupos de heavy metal praticavam em seu som era, afinal, tanto uma reprodução crítica do seu cotidiano de jovens destroçados pelos estertores da cultura metálica do trabalho fabril, então piorado pela ideologia neoliberal e capitalista-financeira, quanto um aviso de que, em pouco tempo, aquelas trevas seriam gerais (não por acaso, o auge oitentista do metal – se subdividindo em tendências cada vez mais radicais, extremas, velozes e pesadas - se dá no coração acelerado dos mandatos de Ronald Reagan e Margaret Thatcher): "ninguém levava fé/ (Alan Moore sabia/ o Nuclear Assault sabia". E isso não é só provocação: pra captar os sons distorcidos desses poemas, essas referências podem mesmo ser mais adequadas do que a de algum filósofo em alta no mercado acadêmico.

E os três últimos poemas de Fliperama talvez sejam a respeito disso. A atmosfera decadente e violenta parece informada pela tradição do heavy metal, algo particularmente notável no "Concerto para duas vozes", poema no qual o imaginário do Black Sabbath serve como base para uma releitura/reescrita metaleira de certa tradição da poesia/literatura modernas e contemporâneas. O poema se inicia com o álbum de estreia da banda britânica dando o tom do terror (a missa negra, o mago, o muro do sono, o cover de "Evil Woman" do Crow etc): "chove muito e intensamente nessa noite/ na casa abandonada, a missa negra/ iluminada por relâmpagos violentos/ velam o sono do velho Mago/ atrás do muro do sono// sob/o espetáculo trôpego do saque/ da música do sangue nas veias// ouve-se o pesado rumor/ de dois sóis// se apagando// Nebulosa de Jatos Duplos ou Nebulosa da Borboleta/ - intensas -/ bruxas bacantes bêbadas beijam-se// o corvo come a carne/ da mulher-diaba// e nós todos a adoramos/ e também nos servimos/ desde os antigos/ papiros/ toda carne se trai". Depois da abertura dessa missa negra (o poema como um black sabbath, como um missa negra, é um conceito a ser pensado em contexto contemporâneo - lembro, aliás, que algumas obras de Diego Vinhas também se encaminham por aí), o que se segue são quase 20 páginas de revisitação satânica (no que o satanismo tem de disruptivo e iconoclasta - Baudelaire aqui é um cara tão importante quanto Tony Iommi) de uma longa fila de poetas: Gregório de Matos, Cruz & Sousa, Augusto de Campos, Décio Pignatari, Nicanor Parra, James Joyce, Rimbaud, Mallarmé, Maiakóvski, Oswald de Andrade, Ferreira Gullar e Roberto Bolaño são algumas das figuras que aparecem nesse rito ou que são oferecidas pelo poeta nesse rito. 

Toda essa tradição, portanto, aparece lida, apropriada e transfigurada a partir do Black Sabbath - é a reencenação retrospectiva da própria formação do poeta. E não é só o metal e nem apenas a poesia, mas essa espécie de transluciferação mefistofáustica (para falar junto com Haroldo de Campos) de uma coisa em outra, já que o som pesado da banda de Ozzy Osbourne aparece ali no silêncio do livro de poemas (é possível imaginar que isso também não repercuta muito bem - ou sequer seja compreendido - por uma tradição crítica que, como a brasileira, não consegue se livrar do nacionalismo). Não se trata, afinal, de uma poesia pop. Ao contrário: como disse antes, a voragem pop - que ataca o próprio heavy metal - é aquilo do que se procura fugir, como se ela fosse responsável por criar hegemonias, algo inviável ou inútil sobretudo num mundo distópico (onde estão as Ruínas de Hoffmann, buscadas em outro poema do livro) no qual só se vive em pequenos grupos, subculturas para as quais a cena do heavy metal foi uma escola (se boa, não sei - mas mesmo o esmero técnico debaixo da sujeira, nestes poemas, é coisa de metaleiro). 

Há aí também certo ocultismo que, curiosamente, fica na imanência: um satanismo laico, dos pobres, dos trabalhadores, dos céticos sem convicção, dos que não têm tempo, algo assim – e numa época em que misticismo e capital se confundem cada vez mais (não sei como é no ABC, onde o poeta se formou, mas na Santa Cecília parece haver mais magos e xamãs do que em toda a Floresta Amazônica), esse ritual metaleiro sabe que o oculto não está num passado onde se busca alguma origem ou pureza (esse mito), mas na descoberta ou criação (real, no braço) cotidiana de sentidos novos numa realidade cada vez mais encoberta (para quem não quer saber de metal, talvez interesse pensar que, por trás disso, aparece Belchior delirando com as coisas reais).

Nos três poemas que fecham o livro (três obras-primas, pra usar um vocabulário arcaico), é no "Concerto para duas vozes" que melhor se realiza o desejo que move o Fliperama: juntar, num riff só, o horror que saltou dos quadrinhos, dos filmes de terror e das canções (e dos cantos mais escuros e quentes das fábricas e das metalúrgicas do ABC, um subúrbio fabril fundamental nos caminhos e descaminhos do país com seus movimentos sindicais, suas cenas de metaleiros, punks e skinheads, sua profusão de poetas) para a rua e a mania de encarar e propor a beleza como via para fazer da vida algo no mínimo tolerável e no máximo extraordinário (neste aspecto, há que se destacar a enfumaçada mas evidente presença de uma cultura canábica na poesia de Calixto). Aí estão o sexo, a lisergia, a amizade, os desenhos animados, a vagabundagem, a erva, o futebol antigo (de viés corintiano), certa poesia, a revolta, o som, a fúria, as imagens - imagens como aquela, talvez a pintura definitiva do livro, na qual vemos São Francisco de Assis "com seu manto amendoado/ o pulso repleto de pássaros/ carregando debaixo do braço/ um disco do Satyricon" (neste contexto, é impossível não lembrar que, quando assumiu seu cargo de primeira-ministra, Thatcher chegou citando - erroneamente - uma oração de São Francisco de Assis, esse santo mendicante associado à penúria e à austeridade) diante da "mágica/ no grande retângulo de cacos multicoloridos/ cuidadosamente cuidados/ iluminado por esse sol bestial e cristão/ no belíssimo vitral/ da capela selvagem/ da Universidade Desconhecida".

Na missa negra, como se sabe, não há a ressurreição de Cristo - e, sem salvação ou purgação, é o próprio poeta, somos nós mesmos que experimentamos uma rotina de morte e retorno ("hoje eu não acordei, eu ressuscitei/ o calor tá maçarico bico 9" canta a voz um do "Concerto para duas vozes"), abandonados à própria sorte mas também radicalmente responsáveis pelo próximo passo, seja ele político ou poético - mas nem só de imanência vive o metaleiro sertanejo metalúrgico: "cemitério odiado pela lua/ flauta de vértebras,/ céu noturno destroçado/ coração de metal, alquimista da dor/ palhaço, mambembe, boêmio,/ comedor de perfumes e auroras boreais// as cidades soam// debaixo do viaduto transcendental/ os herdeiros das estrelas/ observam a tempestade onírica// depois todos morrem".