sobre a poesia de Alejandra Pizarnik

 

tarefas de poesia

La nueva novela é um livro esquisito. Foi publicado por Juan Luis Martínez, chileno da cidade de Valparaíso, em 1977 – e dizem que é um livro de poesia, embora mal haja poemas em suas páginas. O que há é o seguinte: muita prosa e muito trabalho visual (ilustrações, colagens, lances assim) – tão pouco de poesia e de poema, afinal, que foi o suficiente para a filósofa Carla Cordua definir o livro como um “adeus à poesia”.

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A primeira seção de La nueva novela se chama “Respuestas a problemas de Jean Tardieu” e consiste numa série de proposições seguidas de perguntas absurdas como: "Prolongue una línea recta al infinito: ¿qué encontrará al final?"; ou: "Dados dos viajeros, uno nacido en 1903 y el otro em 1890, ¿cómo harán para encontrarse em 1944?"; ou ainda: "Un aviador de veinte años de edad da la vuelta a la tierra con tanta rapidez, que "gana" tres horas por día. ¿Al cabo de cuánto tiempo habrá vuelto a la edad de ocho años?"

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Lá pro meio desta seção, no entanto, aparece uma série chamada "Tarefas de poesia", que trata de seguir propondo exercícios tipo estes acima, mas agora no âmbito da poesia e a partir de alguns poemas franceses. Eis o começo disso:


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Os quatro poemas (de Rimbaud, Mallarmé, Nerval e Valéry) são a base para instruções de escrita como as seguintes:

 

Un fauno cree advertir después del almuerzo unas ninfas. Quiere perpetuarlas. Este fauno es usted. Dígalo en la primera persona del singular.

ou

Un hombre visita el cementerio de su aldea, a orillas del Mediterráneo. Ve unas velas en el mar y las toma por palomas que picotean sobre un techo. Desarolle esta alucinación. El visitante es usted. Dígalo en la primera persona del singular.

Siga as instruções e você escreverá o poema de Mallarmé, o poema de Valéry. Claro: há o contraste fundamental entre o método das instruções sumárias, profundamente impessoais, e a exigência final de uma escrita em primeira pessoa[1] – uma ironia para recontar ou reestruturar a mitologia em torno da escrita poética, esta escrita da qual, tantas vezes, o poeta se exime, localizando a sua origem numa musa, numa divindade, numa inconsciência qualquer, numa tradição. Aqui, segundo Martínez, num exercício escolar, num dever de casa.

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No caso do barco bêbado de Rimbaud, as instruções são as seguintes:


Un barco ebrio cuenta sus recuerdos de viaje. Este barco es usted. Dígalo en la primera persona del singular.

Logo em seguida, aparece um retrato de Rimbaud partido ao meio por uma inscrição:

 


À dedicatória das 4 tarefas, que homenageia Alejandra Pizarnik, somam-se agora as palavras da própria poeta, se bem que levemente alteradas e transformadas numa questão. Em Árbol de Diana, o décimo terceiro poema é: “explicar con palabras de este mundo/ que partió de mí um barco llevándome”. Curiosamente, os dois versos da poeta argentina parecem inclusive uma instrução ou uma tarefa para a escrita de um poema, dada a ela mesma (como se fossem, estas duas linhas, uma anotação ligeira feita na rua, no ônibus, uma ideia de poema a se desenvolver depois – o poema sendo justamente a tal explicação). Mas este é um poema que não vem, ele não é escrito. O uso que Martínez dá ao que Pizarnik anota é uma espécie de torção da proposta original da poeta: as instruções dela, tornadas perguntas, se tornam poema, inscrito inclusive numa tradição específica (a do simbolismo francês e, mais do que isso, a do poeta-fugitivo e viajante Arthur Rimbaud). Não é por acaso que os poemas, em La nueva novela, são os pequenos barcos espalhados no que parece ser um mapa de curvas de nível despedaçado e que o barco bêbado está tão longe dos demais (que aparecem, digamos, mais perto da costa – ou mais próximos ao miolo do livro, sem grandes riscos de navegar até o seu limite, saindo dele, dando o adeus à poesia que o próprio Martínez parece querer dar).

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O barco é obviamente um espaço de onde e pra onde se dá adeus. A embarcação de Caronte é a referência inescapável.

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A partida de Pizarnik, no entanto, é distinta – já que ela permanece neste mundo, precisando usar as palavras deste mundo. Aqui, no 13, a constatação é o oposto do desejo que expressa no 33, mais adiante no mesmo Árbol de Diana: “alguna vez/ alguna vez tal vez/ me iré sin quedarme/ me iré como quien se va”. Ir como quem se vai, ir de uma vez por todas, ir sem, ao mesmo tempo, ficar – a partida (a morte) como costumamos conhecê-la e defini-la[2]. O que as instruções para um poema que explique com palavras deste mundo a sua partida de si mesma, num barco – o que elas parecem indicar é uma outra experiência de morte, uma em que se vai e ainda assim se fica. Óbvio: a da escrita. Tamara Kamenszain já uma vez identificou uma compreensão de Pizarnik da escrita na qual esta seria um relato pós-morte. Todo poema um epitáfio, todo livro um túmulo. A poesia não é a criação de um pequeno-deus cujo verbo dá a vida (como cria Huidobro), mas um exercício e um aprendizado cotidianos da morte: dos seus símbolos, das suas implicações, do seu silêncio – e da possibilidade dela ter uma voz e dizer.

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La poesía chilena, um dos primeiros trabalhos de Juan Luis Martínez, consiste numa caixa que reúne os atestados de óbito daqueles que são considerados os quatro grandes poetas chilenos (Gabriela Mistral, os Pablos de Rokha e Neruda e, claro, o próprio Vicente Huidobro), além de um punhado de terra. Mais uma vez, o poeta já não seria um pequeno-deus, mas uma espécie mundana de coveiro – sendo esta a conexão insuspeita entre a poeta argentina, cultivadora de versos, e o artista chileno, ocupado com livros-objetos e produções conceituais dessa natureza: a poesia sob o signo da despedida, do fim da vida e do mundo, e não do seu nascimento, da sua criação.

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Piglia diz algo semelhante numa das suas teses sobre o conto – que a linguagem para os finais (que ele define como impossível de ser utilizada na vida) é a linguagem com a qual os poetas lidam (e não é na vida que eles escrevem, por acaso?). E aí lembra de Carlos Mastronardi, para quem uma linguagem para os finais exigiria a abolição de todas as outras linguagens: “explicar con palabras de este mundo/ que partió de mí un barco llevándome” – instruções às quais não se segue o poema-explicação, mas a página vazia. Os dois versos do 13 de Pizarnik dizem algo de uma tarefa impossível e apresentam, no espaço em branco que se segue ao dito, a possibilidade de completar a tarefa: o fim da poesia[3].

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Mas, ao contrário de Rimbaud, Pizarnik continua escrevendo, termina o seu livro no poema 38 (“Este canto arrepentido, vigía detrás de mis poemas:/ este canto me desmente, me amordaza”) e segue produzindo a sua poesia até se suicidar, em 1972.

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Em 1972 mesmo, aliás, Pizarnik escreve um poema que dedica a Janis Joplin (morta em 1970, dois anos antes) e que em sua obra completa preparada por Cristina Piña aparece definido como um “fragmento”. Lembro dele (é publicado com o título simples de “Para Janis Joplin”) porque é na rockstar, ali apelidada niña monstruo (as niñas monstruos somam-se às niñas muertas e ninãs extraviadas que Kamenszain coloca no centro da criação da poeta), que Pizarnik encontra uma figura ideal para dizer do custo que é seguir escrevendo, seguir indo e voltando (cada vez mais despedaçada) no barco, seguir cumprindo a tarefa da poesia: “a cantar dulce y a morirse luego./ no:/ a ladrar” – e então observa: “hay que llorar hasta romperse/ para crear o decir una pequeña canción”. A música vem de um choro – e o poema também deve vir – que, a certa altura, rompe aquela que chora: é como se, a cada verso cantado por Joplin ou escrito por Pizarnik, algo se separasse delas – um barco (um verso) levando-as[4].

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hiciste bien en morir” é o que Pizarnik diz para Janis Joplin. Dirigir-se assim a uma niña que não poderá escutá-la ou lê-la não é crueldade ou ironia. Como diz Kamenszain, o desamparo da voz feminina na poesia de Pizarnik só pode se apresentar como um jogo trágico – não por acaso, quando vai definir o que seria um cuerpo poético, Pizarnik diz que ele é “como una cesta llena de cadáveres de niñas”. Voz desamparada, corpos que já são cadáveres – se é a morte (das meninas?) quem diz algo nos versos de Pizarnik, uma parada é certa: tudo será difícil de dizer (diz Orides Fontela); e outra também: sempre vai ser duro escutá-lo[5]. 

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Numa anotação famosa de seu diário, Pizarnik diz que preferiria ter sido uma cantora que passasse suas noites cantando blues em tabernas cheias de fumaça – ao invés da poeta que gastava as suas noites escarbando en el lenguaje como una loca. Há aqui uma contradição, apesar da beleza da imagem. O canto (que seja o do blues) é uma constante em seus poemas, mas ele quase sempre aparece justamente como um método para escarbar na linguagem, jamais para escapar dela (não por acaso um dos seus livros se chama El infierno musical). Quando toma para si o título de um famoso blues (“Cold in hand blues”, muito escutado na voz de Bessie Smith), compõe uma canção assim:

 

y qué es lo que vas a decir

voy a decir solamente algo

y qué es lo que vas a hacer

voy a ocultarme en el lenguaje

y por qué

tengo miedo

- que é, nitidamente, mais uma escarbada na linguagem, inclusive uma tentativa de escapar não da linguagem, mas de alguma outra coisa na linguagem (que deve escondê-la). Seu blues é pra dizer, como diz num outro verso de um outro poema, que “La luz del lenguaje me cubre como una música”, encenando outra contradição, essa de esconder-se coberta por uma luz[6].

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Numa taberna, perto de um porto (suas idas constantes aos portos - sendo ela mesma uma porteña - como em versos assim: "Sí. Y una estrella dará su color al ancla de plata que llevaba en su pecho./ Tirar el ancla. Sí. Muy junto a ese barco gigante de rayas rojas y blancas y verdes… irse, y no volver" me lembram, ao contrário da sua visão constante do barco indo para sempre, mas por causa dessa ambientação musical dramática, os versos de Dolores Duran querendo "a alegria de um barco voltando") - enfim, numa taberna, perto de um porto, a morte canta e toca um alaúde usando ossos de pássaros. Ela está em “El sueño de la muerte o el lugar de los cuerpos poéticos”, uma prosa intensa em que nascimento e morte se equivalem (é comum que a morte venha al alba, ao nascer do sol). A certa altura da gestação, enquanto escuta a canção da morte, a poeta percebe que “hay alguien en mi garganta”, talvez prestes a partir dela, partir-se dela. O poema, que, em outro texto, Pizarnik define como um sudário, não é obra de um deus dando vida – está mais próximo de um ato de conjuração, evocação ou invocação pagã, da obra de uma bruxa que, na sua missa negra, investiga tanto a vida quanto a morte, misturando os seus domínios:

 

En realidad no escribo: abro brecha 

para que hasta mí llegue, al crepúsculo, el mensaje de un muerto.


Para isso, é preciso cobrir-se com esse sudário, o poema, cumprir as tarefas da poesia e identificar-se com o morto, acompanhá-lo, arriscar-se ao subir no barco de Caronte, morrer também um pouco e retornar a este mundo, às palavras deste mundo. Até quando isto for possível.



[1] Seriam tarefas tão impossíveis de praticar quanto impossíveis são as respostas para os problemas propostos anteriormente?

[2] Ou o abandono absoluto de Rimbaud, que foi para a África como quem vai.

[3] Um pouco ao modo de como Spivak define a tradução: necessária, inevitável, porém impossível.

[4] É muito curioso que um outro poeta suicida latino-americano, Torquato Neto, faça uma leitura semelhante a esta de um outro rockstar norte-americano, Jimi Hendrix. Ao narrar o encontro que teve com o guitarrista em Londres, Torquato diz ter visto, na cara de Hendrix, a sua morte iminente – ali, no rosto, ele confirmou o que lera na música: que cada acorde tocado levava consigo uma porção da vitalidade de quem o tocava.

[5] A minha experiência de leitura com Pizarnik é feita aos trancos, marcada sempre por uma dificuldade; leio pouco, por pouco tempo, e as repercussões no que escrevo (como este ensaio) e no que faço fora da página são francamente melancólicas. Afirmar que certa poesia, como a de Pizarnik, sufoca e desnorteia ao ponto de que eu deseje abandoná-la, dar adeus a ela, não é uma questão de crítica ou de apologia: é um fato de leitura com o qual é preciso lidar de dentro mesmo dos parâmetros supostamente científicos e intelectuais que pautam grande parte das nossas concepções literárias e poéticas – a teoria pode se desesperar e entristecer também, não só a gente. E agora lembrei, por ocasião desse papo, de Pound definindo a poesia como a arte feita para alegrar o coração dos homens.

[6] Certamente há muito o que se pensar dessa escolha pelo blues por parte da poeta (sul-americana como Belchior, que prefere o tango argentino) e do que significa essa retirada para uma tradição e uma língua estrangeiras e para uma linguagem originalmente subterrânea inclusive dentro do próprio território e contexto em que surgiu, marcada (como ela parece indicar no poema) por uma utilização sistemática de disfarces e métodos de expressão que procuravam ambiguidades possíveis na língua para fazer denúncias – de natureza racial, no caso.