sobre a poesia de Ederval Fernandes


Gosto, nos poemas de Ederval Fernandes, de um tom que é baixo, menor, pura consciência de que a grandeza é meio ridícula - e de que ela, quando aparece na poesia, costuma carregar consigo uma marca de classe da qual Ederval procura se afastar. Escrevendo longe do Brasil (primeiro, em Feira de Santana; agora, em Lisboa), seus melhores poemas preferem o espaço das praças, das vielas, dos quintais, dos bares - espaços nos quais os trabalhadores fazem as suas vidas individuais e as suas tramas coletivas. Lembro de um poema em que se fala do galo passando o café enquanto, no quintal, a avó canta com os pardais - é outro jogo, no qual a figura da avó faz coisa diferente do que talvez se esperasse dela. Ela não alimenta o neto, em sua cozinha, mas abre a manhã para a comunidade, no espaço aberto do quintal.

A avó é uma figura constante na poesia de Ederval, como o era na poesia de outro feirense, Eurico Alves - e a partir disso vale lembrar que Sant'Anna, a santa e vó, é a padroeira e a dona da feira da cidade que é a própria cidade -, aparecendo em chaves totalmente distintas na poesia dos dois: pra Eurico, a avó é a personificação de uma classe decadente que ele quer evocar, uma tal "aristocracia" sertaneja que vivia em casas de fazenda e nas quais a avó compunha a paisagem familiar do interior do casarão - o neto, versejador, dá continuidade às supostas grandezas hereditárias via poesia, meio que encarada como outra casa de fazenda. Ederval, ao contrário (longe da fazenda, nos subúrbios da cidade, no Feira X), se incomoda com os próprios versos, como se não fosse ali, nos versos, o seu lugar - ou o da sua avó, evocada pela sorte que lhe dá um simples ventilador: "o poema amadurecido/ desaba do lápis.../ Mas por que não faz lembrar/ meu pai, que é eletricista,/ ou minha vó,/ que ganhou um ventilador?" Mas a verdade é que perguntando por que não faz lembrar, o poema, sim, lembra - entra num outro espaço de cultura, que já não diz respeito a aristocracias ou burguesias, e sim à classe trabalhadora da cidade.

Assim como a avó, que ilumina o dia, o pai eletricista dá outra lição de poesia, em outro poema: "Sabem/ o eletricista/ e o poeta/ que a luz/ se projeta/ com o fio. Mas com/ palavras, desconfiam". Claro: há aí um trabalho com a imagem tradicional de poetas como Prometeus, portadores de fogo e de luz, trazendo-a para a figura menor do eletricista - mas não é uma atualização, simplesmente, já que a desconfiança diante das palavras continua. É como se houvesse a sensação, por parte do poeta, de que ele está fazendo algo que não lhe caberia fazer. Desse incômodo parece derivar também dois aspectos da poesia de Ederval, que de certa forma são antagônicos, mas representam o mesmo desconforto com o aspecto livresco mais tradicionalmente associado à poesia: a musicalidade (que predomina no caminho da investigação da fala, da canção popular, do dialeto feirense - que já gerou um poema inesquecível como "O cobrador de van disse") e o prosaísmo (marca, por exemplo, de um dos seus poemas mais conhecidos, o excelente "Gramática Normativa"). 

Esse desconforto, contudo, está longe de conduzir a poesia de Ederval à paralisia ou à desistência. Ao contrário: o texto vai se fazendo ora a despeito, ora em resposta à desconfiança - e se na superfície (como no caso do poema não lembrar a avó ou o pai eletricista) o verso registra a divergência, no fundo a obra segue se fazendo e fazendo, no seu trabalho, um outro caminho para a poesia - que já não tem nada a ver com o livresco, o burguês e o aristocrático. E vale ressaltar, ainda, que esse incômodo diante de uma cultura letrada e livresca afasta a poesia de Ederval de certas tendências atuais, a saber: aquela que marca o poema de tal forma que a gente o lê e já sabe em que departamento ele será estudado - e sob qual marco teórico (uma evidência - essa relação um tanto parasitária ou dependente da teoria - da recente tendência ao encastelamento da poesia brasileira contemporânea, sobretudo a situada, ao menos aparentemente, mais à esquerda; a poesia de Ederval não capitula diante disso - se entende, se faz e se apresenta como uma obra cujas principais implicações não são teóricas, mas práticas, devedoras das questões mais urgentes de uma classe trabalhadora que teima em fazer a sua própria cultura, a sua nova mentalidade). 

Dos diálogos, o mais evidente me parece se dar com a poesia de Ferreira Gullar (muitas imagens de Gullar ressoam na poesia de Ederval, sobretudo no seu primeiro livro), poeta igualmente empenhado em fazer a poesia operar em outros circuitos que não o acadêmico, beletrista e burguês. Mas certos temas que abordei nesse texto me remetem, também, a João Cabral de Melo Neto e ao seu galo que tece a manhã junto a outros galos, uma teia que a poesia de Ederval parece investigar também em suas repercussões para uma ideia de comunidade, de reeducação (há, ainda, um papo direto com o hip hop e suas atuações nos bairros, quebradas e vizinhanças, que o poeta vem afinando sobretudo como forma para lidar com conteúdos e imagens violentas).

Recentemente, ao escrever sobre o Fliperama, de Fabiano Calixto, o poeta e crítico Eduardo Sterzi chamava a atenção para o fato de que o livro propõe a formação de uma "mitologia dos subúrbios como espaço decisivo dos fluxos sociais, econômicos e, não menos, culturais contemporâneos (aquilo que não é plenamente urbe e portanto tem de se reinventar como transversal à pólis, como um fora-porém-dentro-da-lei, e vice-versa)" - algo que me parece ser possível divisar também na poesia em andamento de Ederval Fernandes, autor atento a esses fluxos, que procura dotar os seus versos da materialidade da vida nesses espaços precariamente urbanizados das grandes cidades do interior do Nordeste forçados a repensar os seus espaços enquanto se acelera a sua modernização conservadora.

Esses novos cenários e essas novas vivências são muito bem ilustradas por três poemas que retratam três tempos da trajetória estudantil dessa figura, desse poeta oriundo das classes trabalhadoras contemporâneas, que desconfia das palavras: primeiro, o estudante que, no Feira VI, o bairro universitário feirense, amadurece o poema "bebendo cerveja no bar/ com Mauricio,/ conversando com Tami,/ Davi, Aline,/ Murilo, Rafael/ Nero, Ho Chin Mim, Platão/ Pelé, Gullar, Bandeira..." (compondo a sua paisagem mental variada com referências a jogadores futebol, filósofos, poetas, revolucionários socialistas, amigos etc); em seguida, o tabaréu que se diz "o intercambista amoroso" em Portugal, que conhece e estuda na Europa por meio das novas políticas públicas aplicadas às universidades, agora frequentadas pelos filhos dos trabalhadores, num momento de particular esperança (curioso, aliás, esse título que se refere ao "Pastor Amoroso" de Fernando Pessoa, ainda mais pelo fato de Ederval pertencer a um território - real e imaginário - de vaqueiros e pastores - um passo significativo que foi da vida rural e pastoril à vida urbana e estudantil); e, por fim, talvez já desfeita a esperança, surge o mero trabalhador imigrante e desempregado em Portugal, no poema "Novas ofertas de emprego para Ederval Fernandes" - poema que, aliás, revigora um expediente talvez já cansado (o da enumeração caótica promovida por meios eletrônicos) ao encarar a precarização do trabalho e ao se encerrar, sendo um poema de imigrante de uma ex-colônia portuguesa, aludindo à chance de ser "professor de português em Oeiras". 

Todas essas figuras - mais o pai eletricista, a mãe costureira, a avó que ganha um eletrodoméstico barato, os trabalhadores exaustos e enigmáticos nos ônibus que os levam de volta pra casa ao fim do dia - cooperam com o poeta nesse tecido que deve ser a cultura da sua classe, uma cultura forjada em gíria, em canção, em trabalho, em poema também.