sobre a poesia de Viviane Nogueira

 

 

            a tragédia é inevitável
            nós estamos vivos,
            as coisas acontecem

- são os versos que Viviane Nogueira destaca em itálico num poema em que repete - como notas mentais ou mantras - alguns estribilhos que são lembranças para não se deixar perder na tragédia: "não relar nas rebarbas do caos", "não olhar as rebarbas do caos", "não ser o mensageiro da catástrofe", "tente não ser o mensageiro da catástrofe".

Caos, catástrofe, tragédia, extinção, fim - não é preciso ser um leitor muito atento ou muito curioso pra saber que estão aí alguns dos temas fundamentais dos que se metem a fazer poesia a essa altura do antropoceno. Estamos, todos, inclusive os que não escrevem ou não se interessam pelo que se escreve em poemas, envolvidos numa atmosfera cuja marca, no que diz respeito às artes e aos discursos, é a tentativa de elaboração de uma linguagem que dê conta do seu próprio desaparecimento, que se imagina iminente.

Há um texto de Ricardo Piglia, aquele famoso texto sobre a forma do conto, em que ele relembra o poeta argentino Carlos Mastronardi, para quem "Não temos uma linguagem para os finais. Talvez uma linguagem para os finais exija a abolição de outras linguagens. Para evitar confrontos com essa linguagem impossível (que é a linguagem que os poetas utilizam), na vida se praticam os finais estabelecidos". Há aí, é óbvio, mais uma versão das exageradas apreciações que os poetas fazem a respeito do seu próprio trabalho - eles tanto são os que abriram a linguagem, na infância da humanidade, quanto os que se acham capazes de fechá-la, como se a prática cotidiana da escrita numa linguagem que abole as outras fosse uma preparação para a abolição final.

Apesar disso, a declaração de Mastronardi importa sobretudo por lançar essa dúvida e esse impasse sobre a sedução poética da catástrofe, da qual a poesia de Viviane Nogueira tenta se esquivar. Longe dos caminhos totalizantes, pra ela "o poema é provisório" - daí a sua ida ao registro em baixa frequência do cotidiano igualmente passageiro que, no entanto, não aparece em linguagem banal por ser ele mesmo banal. Ao contrário: me parece haver uma busca real e profunda por uma reelaboração original das coisas lidas e ditas em padarias, praias, ônibus (nunca é um mero registro que confia na transposição para o livro, que não é nenhum Midas, nenhum lugar privilegiado ou especial que automaticamente transforma tudo que toca em poema) - para isso, Viviane joga, por exemplo, com certa ideia de charme advinda de Ana Cristina Cesar ("estou o cúmulo do mau humor/ zero cal/ cansaço, meu bem/ quando morre uma espera?"), com um humor que é, como ela mesma disse nos versos anteriores, mau humor acumulado (em "[Match made in heaven]", é só isso que se diz: "eu vi o céu e as nuvens/ fodendo") e, afinal, com uma investigação dos modos como certas linguagens se apresentam por meio da sua decomposição e de uma série de rearranjos (suas referências ao grão da voz e ao grau zero da escrita barthesianos se encaixam nisso).

O caráter provisório do poema, como se vê, responde a certa desfaçatez de linguagem, mas indica sobretudo o modo como Viviane Nogueira parece lidar com a situação da poeta diante dos riscos de aniquilação. Há, no livro, um poema excelente que começa afirmando "o tempo é o da espera" e que, mais adiante, recua até Mallarmé: "um lance de dados jamais abolirá o acaso", ela relembra, do mesmo jeito que disse "nós estamos vivos,/ as coisas acontecem" (os dados seguirão sendo lançados até que não haja meios de dizer que eles pararam de ser lançados). No entanto, logo após Mallarmé, ela segue: "mas o destino é um déspota sorrindo/ todos os caminhos levam a um/ lugar nenhum desprovido de paz" - esse cúmulo de negações e mau humor ilustrado por um lugar nenhum desprovido é mesmo a poeta lidando com a linguagem dos finais. De modo que: humor, charme e apego ao cotidiano e suas linguagens que não abolem outras linguagens, bem como ao poema provisório (o que não significa descartável), não são sinais de desatenção ao perigo - são, na verdade, formas de escapar do perigo (ou seja: o máximo de atenção possível).

O livro de Viviane Nogueira se chama Uma casa se amarra pelo teto - um título que se desdobra em versos no poema final do volume: "para construir uma casa é preciso aprender/ amarrar as narrativas pelo teto". Aqui não está claro se é preciso aprender a amarrar as narrativas pelo teto ou se é preciso aprender (o quê?) e também amarrar as narrativas pelo teto. Essa inconclusão é também um traço da falta de apego da poeta aos finais, aqui situado justamente no final do seu livro. Lembro que, para Horacio Quiroga, o conto se começa pelo fim - é lá que se amarra a sua narrativa. A rigor, o teto é, de fato, a última coisa que se faz ao construir uma cassa - é o arremate (o fim da casa, ao qual, no geral, não se costuma ter acesso, sendo ele alto demais, ficando longe da gente). Aproveitando o apego da poeta à figura de Roland Barthes, sugiro, no entanto, um olhar para a disposição de um texto numa página e a sua associação à imagem de uma casa: onde fica o teto de um texto? É o seu início, a sua abertura que funda um espaço ao qual nos associamos (o verso inicial desse livro é "cada macaco no seu galho"), no qual entramos e, a depender de uma coisa ou de outra, moramos ou abandonamos (na seção cujo título faz referências ao autor francês, se lê o seguinte: "sempre que está perto de terminar/ volta um capítulo atrás"). Esta é uma visão avessa à sedução do fim, que às vezes pode ser paralisante, coisa que a poesia de Viviane não é e nem quer ser, ainda que volte seus olhos às tartarugas e às montanhas, fenômenos lentos da natureza: "criar um fio que conduza a narrativa/ diante da crise de imaginação do futuro/ como somos como estamos neste mundo".

Sem a linguagem para os fins, que - exagerada e supremacista - aboliria todas as outras linguagens, a poeta parece empenhada em começos, em outros começos (e eu diria: é essa linguagem e essa poesia que interessam, aquelas que não se contentam, derrotadas, em servir de decoração das paredes de uma casa que desaba, mas que arriscam engajar-se em outra coisa, em um futuro onde há alternativas, onde o teto não desaba, mas se desata sobre as cabeças de todos). Claro: esta é uma proposta arriscada, sobretudo enquanto nos intoxicamos com os ares catastróficos de um fim de caminho melancólico (certos de que é isto que o tempo nos exige e de que isso que é ser crítico diante do nosso tempo), mas os riscos, como as tragédias, são inevitáveis - estamos vivos, as coisas acontecem e nos toca, no mínimo, viver todas as horas do fim, se não tranquilamente, como propunha Torquato Neto, ao menos com essa dica de Viviane Nogueira em mente: "todas as horas são horas de viver", afinal             a tragédia é inevitável             nós estamos vivos,             as coisas acontecem