‘Trabalhadores do metrô’, de Raimundo Monte Santo e Walter Marques, cantada e gravada por Xangai, e ‘Recado pro pessoal lá de casa’, de Raimundo Sodré, são duas canções fundamentais da poética da migração nordestina (que é um nome para uma das frentes mais fortes da cultura da classe trabalhadora brasileira). Nos versos de Sodré, endereçados à mãe e ao pai que ficaram, o que se ouve é uma descrição melancólica – e algo injuriada – do cotidiano de trabalho do migrante na cidade estranha:
Desde que eu vim pra'qui
Eu tenho andado tão tenso
Que tudo e tudo que penso
É arrumar a mochila,
É sair desta fila, é sair por aí
Que esta vida aqui não é de brinquedo
É um tal de dormir tarde e acordar cedo que eu te contar...
Essa vida aqui é um verdadeiro porre
Todo esse vem, todo esse vai
E esse corre, corre, corre, corre,
A descrição se concentra sobretudo na falta de sono e descanso (não por acaso no verso que mais se alonga na melodia), no que não se afasta muito de certa tendência, identificável em canções como ‘Identidade’, de Ederaldo Gentil, ou ‘É proibido cochilar’. Diante do sujeito retratado por Sodré, se desenrola uma cidade que se experimenta sem nenhum tipo de fruição ou lazer e cuja única referência a algum tipo de convivência está cifrada na imagem de uma fila – que, por sinal, é outro tópico recorrente, bastando lembrar daquele verso de ‘Sampa’, de Caetano Veloso, sobre o ‘povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas’ (a fila parece atuar como símile da condição do migrante, uma condição de espera, uma condição temporária e provisória mas lenta, cuja resolução vai sendo adiada) ou de ‘Carta a Maceió’, do baiano Gordurinha, enviada não de Sampa, mas do Rio de Janeiro, na qual se ouve que ‘Eu entrei numa fila quinta-feira/ No domingo de tarde ainda tava lá/ Pra comprar um quilinho de feijão’ (a canção de Gordurinha, popularizada pelo Trio Nordestino, só destoa porque o seu refrão – 'Eu queria voltar pra Maceió/ Mas eu fico no Rio que é melhor' – encena uma contradição interessante entre uma vontade e uma constatação).
Após a descrição do cotidiano, Sodré apresenta uma conclusão: a de que ‘(...) no final das contas a gente descobre/ Que a gente não vive, aqui só se morre’. A associação direta entre o trabalho do migrante e a morte ou, ao menos, entre o trabalho do migrante e o adiamento da vida, a sua suspensão por tempo suficiente para resolver as questões materiais da existência, é uma ideia comum entre a classe trabalhadora nordestina residente em São Paulo. Ao perguntar sobre o desejo ou os planos de retornar para o Nordeste, ouvi inúmeras vezes (de porteiros, motoristas e cobradores de ônibus, garçons) a afirmação de que eles tinham, sim, esses planos, pois a estadia em São Paulo deveria ser apenas passageira – afinal, e essa é de fato uma formulação corriqueira, ‘aqui é só trabalho’. Esse adiamento da vida (que em 'Identidade' é o adiamento da felicidade para depois da aposentadoria: 'E com mais de 70/ Eu penso em ser feliz'), embora possa ser lido como uma crítica ao sufocamento do presente, pode também guardar um germe de alternativa esperançosa para um futuro - aquele mesmo de onde se quer arrancar alegria, aquele que deve ser inventado.
‘Trabalhadores do metrô’ também insiste num tom amargo para descrever as relações de trabalho dos migrantes: 'Armou do ferro da férrea necessidade/ Pontes praças e pilares/ Riquezas não desfrutou'. Aqui, não se está muito distante da clássica ‘Cidadão’, de Lucio Barbosa, muito ouvida na voz de Zé Ramalho, na qual a expropriação é cantada de forma literal, na figura do trabalhador que constrói edifícios nos quais não pode entrar e colégios nos quais seus filhos não podem estudar. No caso de ‘Trabalhadores do metrô’, no entanto, o que indica essa expropriação é, sobretudo, o apagamento dos nomes daqueles que trabalharam em sua construção: na placa de bronze instalada para a inauguração da estação, lê-se apenas os nomes de doutores, prefeitos e secretários.
No entanto, a canção composta Raimundo Monte Santo e Walter Marque está longe do desencanto do recado de Raimundo Sodré – isto porque 'Trabalhadores do metrô', a despeito da denúncia, se resolve na festa ou, mais propriamente, no lazer. A convivência, aqui, já não está resumida na fila, mas no forró: ‘Bate zabumba pro povo fazer fuá/ Tristeza de catacumba/ No forró não pode entrar’ – e vale apontar para o fato de que a tal ‘tristeza de catacumba’ certamente diz respeito à tristeza do trabalho subterrâneo da construção do metrô (ou seja: há ainda uma associação entre o trabalho e a morte, mas abre-se também outro espaço, onde nem um nem a outra podem entrar). De modo que a solidão que atravessa a canção de Sodré é substituída, na voz de Xangai, por uma representação da característica massiva da classe trabalhadora que, caso fosse homenageada numa placa tal como o foram os burgueses que comandavam a construção
Precisaria de uma placa que seria
Bem do tamanho da Bahia
Juazeiro a Salvador
Pra que coubesse
O nome de quem merece
De quem vive construindo
Homem, mulher e menino
Que é tudo trabalhador
Existem, portanto, dois aspectos fundamentais em jogo nesta canção: a explicitação da força numérica da classe trabalhadora (com seus homens, mulheres e meninos, mesmo que anônimos, sem placa de bronze que guarde os seus nomes) diante do reduzido número de representantes da burguesia; e também a consciência de que essa classe sobrevive – e, mais do que isso, vive – através da construção de uma cultura, aqui representada pelo forró e pela festa que, a um só tempo, reforçam os laços com o local de origem dos migrantes e também recriam, na cidade grande, o senso de comunidade entre os trabalhadores.
Num vídeo em que comenta o deslocamento massivo de nordestinos para o Sudeste brasileiro, Lilia Schwarcz propõe que, ao invés de falar de migração, deve-se falar de diáspora. Segundo ela, '(...) é certo também que elas [as massas migrantes] contribuíram muito para os locais onde foram, buscando manter e recriar as suas culturas mesmo distantes das suas sociedades. Por isso é melhor que, ao invés da gente falar de migração nordestina, que falemos de diáspora nordestina. Diáspora significa dispersão, sobretudo por motivos religiosos e políticos. Mais tarde, sobretudo no século XX e no XXI, o termo ganhou outra abrangência e se politizou também. De toda maneira, ele se refere a grupos que saem do seu contexto e que recriam as suas culturas em outras sociedades'. Nota-se que, para Schwarcz, falar de diáspora seria politizar a condição – o que não deixa de ser uma tentativa louvável de jogar luzes distintas sobre esse fato definitivo do século XX brasileiro, fato em torno do qual se estruturou muito da economia política da modernização e da industrialização brasileiras.
Mais do que isso, no entanto, me parece que a politização dessa população deveria passar pelo esclarecimento sobre a sua condição de classe – dando um salto entre o discurso já consolidado no senso comum de que os trabalhadores nordestinos ‘ajudaram’ ou ‘construíram’ uma cidade como São Paulo e um outro, mais ativo, de que a massa migrante nordestina, no Sudeste, pode se constituir como um agente decisivo no andamento da luta de classes no Brasil. E isto, na verdade, não seria algo exatamente inédito, visto, por exemplo, que a célula Augusto Pinto, fundada pelos comunistas do distrito operário de São Miguel Paulista, maior reduto da classe trabalhadora nordestina em São Paulo, era uma das maiores organizações proletárias ligadas ao Partido Comunista durante os anos 1940 e 1950 (referida como 'o orgulho do PCB'), sendo visitada por figuras importantes do partido como Jorge Amado, Graciliano Ramos e mesmo Luís Carlos Prestes e por simpatizantes como Dorival Caymmi (além de ter sua luta no âmbito da Nitro Química, grande indústria que concentrava a maior parte dos operários migrantes da região, acompanhada e referida por Carlos Marighella) - tudo isso é recontado e registrado pelo historiador Paulo Fontes no seu importante livro Um nordeste em São Paulo: trabalhadores migrantes em São Miguel Paulista (1945-66).
Experiências como estas tentam reverter o processo de desculturização do migrante, sendo este o termo empregado por Milton Santos para definir a condição do sujeito confrontado 'com um espaço que não ajudou a criar, cuja história desconhece, cuja memória lhe é estranha', tornando-se esse lugar 'a sede de uma vigorosa alienação', pois 'Desterritorialização é, frequentemente, uma outra palavra para significar estranhamento, que é, também, desculturização'. Note-se que essa tradição da poética da migração nordestina, discernível em canções e poemas como 'Cidadão' ou 'Trabalhadores do metrô', vai justamente afirmar a participação dos trabalhadores migrantes na criação do espaço da cidade, numa tentativa de criar territorialização e cultura. Nestas poucas páginas que Milton Santos (em seu livro A natureza do espaço) dedica ao tema da migração, o geógrafo baiano observa, ademais, que este já não seria um traço apenas do migrante (ou do turista), mas de todos aqueles inseridos num modelo industrial e capitalista de habitar o espaço, que passam a operar segundo uma lógica imposta às mercadorias e ao próprio capital, aspecto que parece reforçar a necessidade e a validade de se pesquisar e refletir a respeito dessas poéticas migratórias: 'Hoje, a mobilidade se tornou praticamente uma regra. O movimento se sobrepõe ao repouso. A circulação é mais criadora que a produção. Os homens mudam de lugar, como turistas ou como imigrantes. Mas também os produtos, as mercadorias, as imagens, as ideias. Tudo voa. Daí a ideia de desterritorialização'.
Em São Paulo está mais do que consolidada uma cultura nordestina em práticas (de solidariedade, de reconhecimento, de apoio mútuo) e mesmo em territórios específicos do ambiente urbano (bairros, zonas, ruas, fábricas e outros locais de trabalho, centros de sociabilização, bares). É isto que uma canção como ‘Trabalhadores do metrô’ está buscando retratar e, ainda, cultivar: uma cultura comum que pode, afinal, ser também uma cultura politicamente orientada para o cultivo de ideais em prol da classe trabalhadora, uma cultura que, mais do que comum, seja comunista.
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A foto que ilustra o post é da série 'Retirantes - Migração', de Henri Ballot.