sobre as camisas de time

 


No seu livro, O negro no futebol brasileiro, Mário Filho diz o seguinte sobre a confecção da primeira bandeira do Botafogo: 'O escudo, um escudo complicado, de letras finas, retorcidas, tomou mais tempo, pois precisava ser bordado. Ficou um trabalho como só mãos femininas podem fazer. Quando é o amor que as guia'. As mãos, dentro de campo, são apenas as do goleiro - e elas não fazem um trabalho propriamente amoroso: socos e tapas na bola (como bem observa Wisnik) são cada vez mais constantes do que o abraço (e quantos goleiros, após uma encaixada importante e difícil, ainda dão um beijo carinhoso na pelota?).

O ideal regressivo de virilidade e masculinidade do jogo de bola não esteve sempre aí, e o próprio Mário Filho relembra que, entre as tretas iniciais do futebol no Brasil, estava aquela travada contra o remo e os seus atletas, muito populares à época. O remador era o exemplar mais bem-acabado do homem, e os remadores, antes de se renderem (alguns) ao crescimento avassalador do futebol, consideravam o boleiro um tipo afeminado, uma espécie de bailarina saltitante - e, de fato, dribles e lances de efeito guardam muito mais do balé do que da luta.

Muito daquilo que, grosseiramente, se costuma associar ao universo feminino é parte fundamental do futebol: a vestimenta, por exemplo, que vai do campo à arquibancada, dos jogadores até a torcida, é um intrincado e significativo ato de moda. Se o uniforme remete à guerra, ao universo militar e à faccionalização, suas combinações de cores, suas variações, o meião, os shorts curtos, os números e os escudos bordados que as camisetas carregam são moda e tudo isso cruza a cabeça dos jogadores e da torcida antes, durante e depois do jogo. Mais do que 'mantos sagrados' (como alguns torcedores se referem às vestes dos seus times do coração), os uniformes, as camisetas tricolores, rubro-negras, alvinegras são uma tentativa de beleza e de harmonia. 

Grandes artistas brasileiros estiveram atentos a isso. Dentre eles, gostaria de lembrar apenas de Flávio de Carvalho, que desenhou uma série de projetos para uniformes a serem usados pelos jogadores e árbitros nas transmissões de uma novidade da época: a TV em cores. Entre os projetos, destaca-se o uso de saias, de padrões carnavalescos multicoloridos e um tanto arlequinais e de maquiagens muito pouco discretas para jogos noturnos. Parece haver, por parte do artista, uma tentativa não de borrar as distinções entre um campo feminino e outro masculino, mas de evidenciar a artificialidade desses supostos campos (basta lembrar, considerando a observação de Mário Filho sobre o escudo bordado do Botafogo, que, na mesma época em que o futebol se popularizava, as figuras talvez mais simbólicas de uma masculinidade violenta e aventureira - os cangaceiros nordestinos - eram, em sua maioria, alfaiates, costureiros e também bordadores dedicados e delicados).

Os projetos de Flávio de Carvalho dificilmente seriam levados a sério entre os jogadores e os torcedores - com a exceção, talvez, dos goleiros. Como já foi dito, só os goleiros trabalham com as mãos dentro do campo - as mesmas mãos cujos trabalhos de costura e de bordado exigem. O goleiro, como se sabe, costuma ser identificado - negativamente - com a feminilidade ou a homossexualidade, bastando lembrar, no caso brasileiro, de Raul Plasmann, um dos primeiros atletas a romper com o uso padrão da cor preta dos sóbrios uniformes dos arqueiros, jogando de amarelo e logo passando a ser chamado de Wanderléa pela torcida adversária (que julgava a comparação com a cantora da jovem-guarda um insulto e tanto). Wisnik lembra de Raul e faz inúmeras observações sobre o traço feminino do goleiro, que ele situa na 'cozinha' do campo de futebol, junto com os zagueiros: 'Na defesa, as funções mais 'femininas' do cultivo e da esfera doméstica, a chamada 'cozinha', que culmina no goleiro'. Eu, por mim, diria que não culmina, mas que se restringe ao goleiro (visto que o zagueiro encarna uma função violenta de proteção e destruição, sendo bastante associado, por exemplo, à figura de um 'xerife').

O goleiro mexicano Jorge Campos, além de chamar atenção pela sua estatura, baixa demais para a posição, se destacava pelos seus uniformes em cores berrantes, com padrões geométricos intrincados. Jorge, além de jogador (ele atuou também como atacante durante uma fase da carreira) era um estilista, pois era ele mesmo quem desenhava as roupas que usava em campo. Muitas delas, inclusive, lembram as propostas de Flávio de Carvalho, levando ainda além a ousadia simplesmente amarela de Raul Plasmann e chegando a um estilo multicolorido e também arlequinal. Seu estilo, no entanto, não parece ter gerado seguidores.

Mário Filho também relembra, no mesmo livro, das origens operárias do Bangu - um clube criado por uma fábrica de tecidos e jogado pelos trabalhadores dessa fábrica. Ele diz que, quando não atuavam com os pés, nos campos, os jogadores trabalhavam com as mãos, nos teares ou na 'sala de pano' da fábrica, onde dobravam os tecidos. E vale lembrar: o jogador que dribla muitos adversários, ou que atravessa o campo numa jogada bem tramada com os seus companheiros de time - este jogador costura. Haveria aqui, quem sabe, uma relação de oposição entre o trabalho manual e a exploração da atividade fabril e uma possível liberdade experimentada em campo, onde se atua com os pés e criativamente?

Quando fala do visual do cangaceiro (este costureiro e bordador), Frederico Pernambucano de Mello o compara aos trajes do samurai japonês e do cavaleiro medieval europeu, afirmando que nenhum outro grupo social brasileiro levou tão longe um conceito próprio de bem-vestir. Os panos do futebol (que incluem bandeiras, flâmulas, faixas, escudos) sofrem desde os anos 1980 com presença grosseira e impositiva de patrocinadores, mas seguem, ainda que muito mais simples e funcionais do que trajes de cangaceiros, samurais e cavaleiros (ou justamente por isso), como parte incontornável do horizonte imagético do Brasil e de certos grupos sociais.

Recentemente, por exemplo, a camisa da seleção brasileira se tornou o uniforme da extrema-direita, levando muitos torcedores a confeccionar camisetas da seleção na cor vermelha, em oposição aos fascistas e em aceno ao fantasma comunista contra o qual os reacionários se insurgem. Bolsonaro, por sua vez, adotou a prática de usar camisas dos mais variados times - e, a cada aparição, as torcidas se dividem entre louvar a divulgação que o presidente faz do seu clube do coração e em atacá-lo como um hipócrita apropriador de cores que não podem lhe pertencer (vale lembrar, nesse ponto, do ex-governador do Rio de Janeiro Anthony Garotinho utilizando um uniforme composto de uma metade rubro-negra do Flamengo e outra metade tricolor do Fluminense). O uso das camisas por Bolsonaro não passa de uma manobra barata que, a essa altura, já possui baixo alcance, e que tende a morrer - com ele passando a ser visto apenas como mais um homem cuja estupidez encontra porto seguro no que há de pior no futebol. Isso se dá pelo fato de que o uso intensivo, no seu caso, é lido pela massa ligada ao futebol como um 'jogar pra torcida' ou como uma das poucas demagogias que o futebol não aceita: a do vira-folha, do vira-casaca (em torno disso, gostaria de lembrar o caso de Paulo Carneiro - tiranete que preside o meu time, Vitória, e que por bastante tempo gostou de se associar à figura e à ideologia bolsonarista -, ele mesmo um vira-casaca que fez questão de posar com a camisa do Bahia quando, por algum tempo, trabalhou no time rival).

Por outro lado, a camisa de time já se consolidou como um artefato importante da moda entre os jovens de periferias brasileiras - muito associada à produção musical do funk e da cultura hip-hop em geral. Assim como Bolsonaro, estes jovens (excetuando-se algumas figuras como Poze do Rodo, flamenguista dedicado) promovem uma ruptura entre o símbolo do time e a torcida - mas, ao contrário do presidente fascista, não simulam um aceno aos torcedores; eles assumem, já na partida, esse desligamento: as camisas são símbolos exclusivos de moda. Ao descrevê-las como 'chiques', 'elegantes', cheias de 'estilo e conforto', esse jovens buscam fundar outro circuito imagético, no qual as camisas esportivas (sempre tomadas como toscas vestes de homens desleixados) é que são o ápice do bem-vestir. Música e futebol - sempre vistos como dois dos caminhos tradicionais para o desvio dos jovens de periferia (em sua maioria, jovens negros) da vida legada por seus pais (sempre uma vida de trabalho árduo e explorado, talvez de trabalho manual tal qual na fábrica do Bangu) - são novamente associados dessa forma. 

Como consequência, alteram-se modos de vestir e de ver - e a ideia de elegância é reinventada, bem como as cores dos times perdem muito do seu caráter um tanto ganguista e violento (e é gerado, ainda, um movimento intenso na produção e no comércio de falsificações - um mercado cada vez mais defendido por figuras importantes dentro dessa cultura). Chama atenção, por exemplo, o fato de um corintiano como o mc Fleezus usar a camiseta do Celtic - time que, embora seja escocês, é alviverde como o Palmeiras (e quem está minimante familiarizado com o futebol e com a rivalidade entre os dois times de São Paulo sabe que isso é um caso sério e perigoso). Há, portanto, uma disputa simbólica da camisa de time travada entre os fascistas demagogos e uma juventude periférica cuja consciência política tende e pode chegar à mesma conclusão da famosa frase dos torcedores antifas: nem a guerra entre as torcidas, nem a paz entre as classes.