O que mais gosto na poesia de Gullar são os movimentos. O movimento inicial do bairro ou da cidade - das pessoas que habitam o bairro e a cidade, ou que passam por eles, e dos materiais que essas pessoas criam ou fazem circular por estes mesmos espaços. Ou ainda o movimento da migração, logo seguido pelo movimento do exílio - ambos também atentos ao que circula por onde se passa, à materialidade do tempo e das relações concretas entre as pessoas e os objetos, os trabalhos e os dias.
Claro que o Poema sujo deve ser o ponto máximo dessa poética - um poema cujo disparo ocorre em Buenos Aires e cujas abertura e desfecho textuais se dão no Brasil, no Nordeste, no Maranhão, em São Luís, na Rua dos Prazeres. Gosto muito dessa redução que se vai operando, ao contrário, pelo sinal positivo da soma ('mais', sempre), através do corpo do poeta: "mas sobretudo meu/ corpo/ nordestino/ mais que isso/ maranhense/ mais que isso/ sanluisense/ mais que isso/ ferreirense/ newtoniense/ alzirense/ meu corpo nascido numa porta-e-janela da Rua dos Prazeres". Esse retorno à rua sinaliza o ponto mínimo (ou máximo) dessa volta a uma paisagem que é, em suma, regional e infantil.
A obra de Gullar, no que diz respeito à composição dessa paisagem, lida com aspectos tradicionais da formação de um imaginário nordestino – sobretudo com a pobreza e as desigualdades sociais (o 'Poema brasileiro' e 'A bomba suja' talvez sejam os casos mais claros) e com a evocação nostálgica da infância (infância que, em poemas como estes citados antes, aparece violentada pela pobreza). Mas por exemplo: é por meio do contato do poeta ainda criança com os subúrbios de São Luís que, no Poema sujo, se resgata o surgimento de uma consciência política e social (que resulta no engajamento, na filiação e militância no PCB, que resulta no exílio), já ressoando no coração da criança diante da pobreza: "combatente clandestino aliado da classe operária/ meu coração de menino".
Em seus poemas, ademais, o Nordeste é constantemente evocado por meio da imagem do trapo, numa referência óbvia à pobreza – em “Uma nordestina”, a personagem aparece “de trapos vestida/ é uma rainha/ e parece mendiga”; em “Bananas podres 2”, o cenário é composto “de olhares humanos entre trapos/ na poeira de fogo/ o meu nordeste/ um molambo/ embrulhado num relâmpago”. Nada a ver com reiterar e reforçar estereótipos - essa poética nordestina de Gullar, a meu ver, se baseia na seguinte leitura: mais do que uma identidade cultural, o Nordeste (ao qual o Maranhão se integra tardiamente pela via oficial) partilha uma realidade material, concreta, marcada pela desigualdade em relação ao restante do país, que se aprofunda no interior do seu próprio território - tudo isso fruto dos modos de desenvolvimento do capitalismo dependente brasileiro. De modo que afirmar, como o faz Belchior, que o Nordeste é uma ficção possui tanto força quanto limitações evidentes (certamente para o próprio Belchior, que pautou sua carreira em certa ideia de cultura nordestina), limitações que dizem respeito às lutas por transformações da realidade - ou, ao menos, para a compreensão dessa realidade. Que termos como 'imaginário', 'cultura', 'narrativa', 'subjetividade', 'sotaque' ou 'expressão' norteiem o debate sobre o regionalismo e o Nordeste, hoje, é até compreensível - mas que outros como 'economia', 'trabalho', 'desigualdade' e 'realidade' não apareçam tanto me parece um equívoco.
O que a poética nordestina de Gullar aponta, por meio da sua rememoração constante da realidade material da região, é justamente uma história - que vai além das divisões territoriais (é um dado óbvio que Bahia e Piauí possuem distinções - assim como cidades vizinhas do Ceará não partilham de uma mesma história ou cultura, ou assim como dentro de uma cidade igual a Feira de Santana existem diversas variações de sotaques) e se assenta numa relação desigual dentro do sistema que conforma nosso país, o tal capitalismo brasileiro. Muito do que é ficção, afinal, resulta em coisas concretas: a fome que, segundo a Articulação Semiárido Brasileiro, atinge 47% da população do agreste e do sertão nordestinos e do norte de Minas nesta pandemia não é uma questão de imaginário. Este é um dos casos (outro é: não faz muito sentido lutar pela ideia de que ‘o Nordeste não é só fome’ – afinal, enquanto a fome for um dado da região, mesmo que mínimo, é preciso lidar com isso, é preciso erradicá-la: num território em que há fome, vamos lutar para que ela suma do 'imaginário' nacional, que passaria a ser dominado pelas classes médias bem alimentadas?). Gullar, acho, sabia disso.