sobre Gilberto Gil

 


Acho nunca escrevi nada sobre Gilberto Gil, que faz hoje 79 anos. Mas sua obra e seu pensamento são centrais pra mim - formativas nos processos de alfabetização e educação sentimental e política por um lado e de início, e elucidativas, em seguida, dos caminhos a se seguir enquanto se pretende fazer arte e poesia. Se a memória não me engana, uma das primeiras canções a me tocar e a se gravar pra sempre em meu coraçãocabeça, com melodia e letra, foi 'Madalena (entra em beco, sai em beco)', que devo ter ouvido mesmo ali por volta de 1992, quando ela saiu em disco e eu tinha entre 6 e 7 anos - ouvi, é óbvio, sem saber que ela era cantada por Gil (e certamente sem saber quem era Gil - e só muito depois de saber quem era Gil fui saber que essa canção não era sua).

Aquela era uma música que circulava por todos os lados (talvez estivesse na trilha de alguma novela, não sei), livre, denunciando a fome - que era um tema comum: presente tanto no bairro quanto no noticiário, a fome estava na história da minha família e no cotidiano de outras, vizinhas (junto a essa canção, lembro nitidamente de estar na casa de alguém desta mesma vizinhança e de ver minha mãe e mais gente chorando ao assistir uma matéria no Jornal Nacional sobre a situação de fome em algum fundão do semiárido). A fome é uma questão que atravessa toda a obra de Gil, desde os primórdios com 'Eu vim da Bahia' (com aqueles versos sobre a gente não ter o que comer na Bahia e, ainda assim, não morrer de fome). Curiosamente, ela está quase sempre ligada ao tema da religiosidade - tanto na perspectiva da esperança (por mais esquisita que seja, como é o caso de 'Eu vim da Bahia', em que a morte é evitada pela intervenção divina passando por cima da consequência política) quanto da condenação, como parece ser o caso de 'Procissão' (parceria com Edy Star, na qual a fome não está nomeada, mas certamente compõe o quadro de abandono do sertão pintado pelos compositores) e sua própria ideia de esperança, neste caso uma esperança falsa ('Esperando, esperando o que Jesus prometeu'), que surge justamente como uma condenação da fé que não move nada além dos passos da própria procissão.

Gil é um daqueles artistas cuja obra está fundada num projeto - que é o da emancipação da raça humana, pra usar um termo caro a ele -, projeto que se vai revelando (certamente para o próprio Gil) a cada passo de uma trajetória inquieta - que é regional, nacional ou internacional, mas sempre abrindo novos caminhos: aí está sua viagem a Caruaru (onde encontra tanto os pífanos quanto a guitarra); ai está sua viagem a Lagos (resultando no Refavela e na entrada definitiva da questão racial e da negritude no centro desse projeto);  aí estão também seus encontros com Jorge Ben, com Jimi Hendrix e com Bob Marley - três exemplos singulares de um mestre que se dispõe a aprender, sempre; aí estão, ainda, sua atuação política e o seu modo de expressão, numa fala que reinventa a atenção dos ouvidos brasileiros para uma sabedoria da oralidade misturada com certo pendor barroco típico do espaço baiano - ouvidos brasileiros que, quando estão meio surdos e não entendem bem, reputam o desentendimento a uma verborragia típica de 'um discurso de paraninfia/ Da turma de bacharelandos/ Da Universidade da Bahia', como canta o próprio Gil, com graça.

Chama atenção, ainda, o modo como Gil enfrentou questões fundamentais a partir da década de 1990. Por exemplo: sua afirmação contra o fim da história neoliberal, numa canção curiosa ('O fim da história'), em que esse debate chega a Lampião e à persistência da memória desse bandido heroico, e na qual a tese de Fukuyama é refutada pela leitura do mesmo fato que a cria: a queda de quem derrubou o czar é o sinal de que a história segue, seguirá. Com a sua mania de cultivar a dúvida como uma forma de esperança e confiança no futuro, Gil escreve, ainda, 'Um sonho', canção em tom caipira que vaga entre a fragilidade da realidade e a força do sonho, entre o trabalho que leva ao progresso e o lazer poético, entre o operário e o estudante que se juntam na percepção da centralidade da questão indígena:

Me despertei
Assustado e ainda tonto
Me levantei e fui de pronto
Pra calçada ver o céu azul

Os estudantes
E operários que passavam
Davam risada e gritavam:
“Viva o índio do Xingu!"

Note-se que muitas destas canções que evoco ('Madalena', 'O fim da história', 'Um sonho') fazem parte de um disco nem tão bem cotado entre seus ouvintes, o Parabolicamará, de 1992, saído logo em seguida ao fim de um sonho socialista e em meio à afirmação do pesadelo neoliberal, mas que traz um Gil vívido e confiante, apontando como caminho tanto Caymmi  - o buda nagô - e o baião quanto o funk carioca e a antena parabólica já importante para o mangue beat, lá em Recife. Este álbum me parece sintomático de certa distinção entre as apreensões do primeiro e do terceiro mundo em torno da dissolução soviética e da confirmação da vitória capitalista e neoliberal. Mark Fisher nota tanto em Kurt Cobain quanto na ascensão mainstream do rap um sinal da consolidação do realismo capitalista ensaiado nas décadas anteriores - uma consolidação que levou o capitalismo a colonizar inclusive 'os sonhos da população', impedindo qualquer visão de utopia ou alternativa.

O sonho de Gil (que se estende para a realidade, pois é nesta, já desperto, que se vê os operários e os estudantes), bem como a sua resistência em aceitar a ideia de fim da história são sinais de divergência (que precisam ser lembradas e louvadas, já que, como lembra Fisher, a tese de Fukuyama 'pode ter sido amplamente zombada, mas continua sendo aceita, e mesmo presumida, no plano do inconsciente cultural'). Esta divergência é notável, no campo da arte brasileira, e especificamente na sua música, na obra de Caetano Veloso do ano anterior (Circuladô, no qual se desconfia de que 'alguma coisa está fora da ordem/ fora da nova ordem mundial' e se afirma saber de '(...) diversas/ Harmonias bonitas/ Possíveis sem juízo final...'), nas propostas do mangue beat (ao qual, como vimos, o próprio Gil já acena) e na força emergente do Racionais (aqui entendido como símbolo de uma cultura hip hop em toda distinta daquela que vai se consolidando no mainstream mundial). 

A melancolia suicida e consciente de Kurt Cobain pouco ou nada tem a ver com a postura revolucionária de artistas como Mano Brown ou Chico Science (vale anotar que os jovens artistas pernambucanos em movimento ainda apostavam até mesmo na ideia modernista e, antes disso, comunista de manifesto - ou seja: evitavam conscientemente a dissolução da ideia de grupo e coletivo, da ideia de comum, em proveito de uma independência individualista cujo resultado é, em geral, a rarefação das ideias e da luta). O contexto brasileiro e terceiro-mundista certamente pesaram nisso: atentos a Cuba e ao Haiti (os dois presentes também no Tropicália 2, de 1993, e Cuba já naturalizada no repertório baiano desde o próprio Caetano - com 'Quero ir a Cuba' - até o Olodum, em sua clássica 'Um povo comum pensar'); próximos ao mangue; habitantes das periferias de São Paulo, de Recife, do Rio de Janeiro e de Salvador (e saindo de uma ditadura militar de direita e entrando na realidade do Carandiru), estes artistas precisavam ver outra coisa que não o horizonte cerrado e conformista composto por figuras como Reagan, Thatcher e Fukuyama (e muito do que viam vinha com a força de uma leitura também racial das questões contemporâneas, como o próprio Gil já propunha desde décadas antes). Por isso seu horizonte era revolucionário - miravam o futuro e evocavam as forças do passado, do mais antigo (como Lampião no caso de Gil e Science) ao mais recente (como Jorge Ben no caso de Caetano e dos Racionais) para reacender a imaginação, algo evidente nos versos que abrem o disco dos camaradas do mangue atentos às parabólicas:

(...)
O medo dá origem ao mal
O homem coletivo sente a necessidade de lutar
O orgulho, a arrogância, a glória
Enche a imaginação de domínio
São demônios, os que destroem o poder bravio da humanidade
Viva Zapata!
Viva Sandino!
Viva Zumbi!
Antônio Conselheiro!
Todos os panteras negras
Lampião, sua imagem e semelhança
Eu tenho certeza, eles também cantaram um dia.

Parabolicamará, diga-se, é um título significativo para tudo isso, unindo o interesse (poético e prático) de Gil em tecnologias de ponta, na internet e na exploração do espaço, com esse termo típico entre os capoeiristas, cujo final abrupto surpreende o ouvido do camarada, mas não ao ponto do não reconhecimento (o camará é o camarada, ainda - o camarada que luta, dança e, olhando as antenas parabólicas na lama, assina manifestos porque insiste na utopia realizável: 'O que fazer para não afundar na depressão crônica que paralisa os cidadãos? Como devolver o ânimo, deslobotomizar e recarregar as baterias da cidade?', perguntava Fred Zero Quatro).

Tudo isso, essa trajetória engajada na transformação da realidade e na defesa dos sonhos, leva a minha apreciação de Gil cada vez mais pra longe do culto místico à sua presença entre nós, algo que tem me parecido comum nos últimos tempos (pensar Gil como a representação de um ente fora da história e fora do Brasil e da sua constituição contraditória - representação individual do que devíamos ser, do que poderíamos ser, do que já fomos etc.). Os versos - incríveis versos - que abrem 'Queremos saber', por exemplo, me parecem dar a medida de que Gilberto Gil é, mais do que tudo, um homem do seu tempo, entre outros homens, lutando - querendo saber, afinal, de que modo até mesmo as descobertas para além do Planeta Terra, e mesmo da antimatéria, vão repercutir nas condições materiais da vida da raça humana aqui mesmo, dentro do Planeta Terra: 

Queremos saber 
O que vão fazer 
Com as novas invenções 
Queremos notícia mais séria 
Sobre a descoberta da antimatéria 
E suas implicações 
Na emancipação do homem 
Das grandes populações 
Homens pobres das cidades 
Das estepes, dos sertões 

Parabéns a Gil, camarada, camará.