sobre o cangaço

 


A conversa bem-pensante, hoje, aquela que louva estados democráticos de direito e seus discursos, sustenta que a memória do cangaço é, necessariamente, um mal social que mantém o Nordeste na obscuridade das mitologias. O argumento mais comum é o de que, uma vez encerrado, o fenômeno do banditismo rural se tornou mito pela via da escrita semianalfabeta e meio bárbara da poesia popular (cujos folhetos sobre cangaço o Estado Novo proibiu, aliás). Estou longe de ser especialista, mas li e tenho lido muito material em torno do tema e está longe (muito longe) da verdade a ideia de que a tradição do cordel simplesmente tomou figuras como Corisco, Zé Baiano e Lampião como espécies de santos ou protetores de um povo. A representação, em seus melhores momentos, é complexa (o que talvez surpreenda quem pensa que a poesia popular é ingênua) - e nunca deixa de explorar o lado brutal dessas figuras e da sua atividade (as condenações são explícitas, marcadas por uma moralidade religiosa evidente - basta lembrar da chegada de Lampião, e outros tantos cangaceiros, ao inferno). Como gosta de dizer Pernambucano de Mello, os cangaceiros são escritos como heróis se se pensa, como os antigos, que o herói é o sujeito capaz de grande feitos - para bem ou para o mal. O cangaço, de fato, se tornou símbolo de insubmissão e liberdade - mas isso se daria a despeito da poesia popular, numa mistura de memórias fieis ou infiéis dos seus feitos realizados, sobretudo, contra o poder militar republicano, contra as polícias, e da sua independência - pessoal - da lógica empobrecedora do latifúndio (um fenômeno lido, afinal, como uma espécie de guerrilha). Como se sabe, a chegada de um grupo de cangaceiros ou de uma volante que os perseguia era encarada pela populações dos povoados e cidades do mesmo modo - como fonte de violência, a mesma violência que as populações sertanejas já conheciam, de memória ainda fresca, de histórias como as de Canudos (por exemplo: no mesmo ano em que Lampião foi morto, o comandante Optato Gueiros, conhecido como 'caçador de cangaceiros', liderou o massacre de Pau de Colher, no alto sertão da Bahia, dizimando uma comunidade já remanescente de outro massacre, o de Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, no Ceará - tudo a mando da República brasileira, que costuma deixar nas mãos da força militar - essa inimiga do povo - a eliminação violenta das ameaças - sobretudo das ameaças comunistas que, veja só, foi justamente como ela descreveu essas comunidades rurais lideradas ou inspiradas pelo beato José Lourenço). Lidar com a tradição do cangaço - como se fez, por exemplo e mais recentemente, em Bacurau (que deixou nossos pequeno burgueses apavorados) e Sertânia, mas também em boa parte da filmografia de Glauber Rocha - não tem nada a ver com exaltação acrítica da violência marginal (sua associação direta a milícias e crime organizado contemporâneos também não faz o menor sentido, visto os contextos absolutamente distintos em que essas manifestações da violência se criam), mas com explicitação crítica da violência oficial, a mesma que hoje se mostra ainda mais intensa contra diversos setores da população do país inteiro, estejam eles nos sertões ou nas cidades (e, pra além do cangaço, essa tensão aparece mesmo no forró - bastando lembrar que no 'Forró em Caruaru', celebrizado por Jackson do Pandeiro, uma briga é descrita com os versos "matemo 2 soldado/ 4 cabo/ e 1 sargento" - uma baixa e tanto na forças policiais). Esperar pela retirada - civilizada, discursiva, bem-pensante, burguesa, tomando vinho tinto caro - dessas figura do imaginário de uma local fundado e refundado na violência é uma ilusão e uma incompreensão do motivo que leva Chico Science a cantar que Lampião também cantou um dia (e o motivo talvez seja a necessidade, ainda hoje e cada vez maior, de ilustração da insurreição possível).