Se não me engano, foi por ocasião da Copa de 2018 que Edinson Cavani escreveu sua 'Carta a mí mismo de pequeño'. Nela, o centroavante uruguaio passa a limpo uma história que, muito embora pessoal (a história de Pelado, a criança careca que cresce na cidade de Salto, no interior do Uruguai, para se tornar o cabeludo Cavani, estrela nas capitais europeias), é também comum a muitos pequeños: a história do lazer da classe trabalhadora sul-americana - ou, mais propriamente, da infância da classe trabalhadora sul-americana, aquela que vive a 'vida afuera, con una pelota en los pies. A la manera sudamericana.' Cavani recorda o cotidiano de pobreza e de dificuldade, de frio e de medo - e da breve mas intensa liberdade experimentada nos campos improvisados pelas ruas e terrenos baldios das esquinas do bairro.
O jogo, na carta, é aquilo que nenhum 'proprietario en el mundo' - os mesmos proprietários que cobram os aluguéis e ordenam os despejos da sua família - pode tirar do garoto. O futebol, nessa chave, é lido como algo avesso à propriedade privada, um tempo/espaço sem dono, conduzido pelos jogadores de forma autônoma, forma baseada na ideia de que o jogo é um bem comum, do qual todos podem usufruir e pelo qual todos são responsáveis em igual medida.
O tom de Cavani é sobretudo sentimental (ele é um continuador da prosa futebolística do seu compatriota Eduardo Galeano), mas não evoca o passado para compor um elogio da carreira triunfante que, superando as dificuldades por meio do empenho individual, resulta na fama internacional e na riqueza, como seria de se esperar em nosso tempo vitimado pelo discurso e pela paisagem mental neoliberal - ao contrário: segundo o centroavante, todas as coisas conseguidas com esse sucesso 'No necesariamente te harán feliz'. A opulenta experiência da fama e da dinheirolatria futebolística aparece aqui descrita como uma prisão, uma vida cuja intensidade e cuja paixão são pequenas se comparadas à intensidade e à paixão do menino que joga, livre: 'En muchos aspectos, estás viviendo en un sueño. Pero en muchos otros, también eres prisionero de ese sueño.' Trata-se, sem dúvida, de um discurso desviante se comparado ao tom predominante nos relatos feitos por jogadores de futebol, sobretudo nos dias de hoje, quando tão facilmente se aceita que o jogo (os times, as camisas, os campeonatos, os próprios jogadores) tenham proprietários.
Numa das crônicas reunidas em Febre de bola, Nick Hornby observa que, na arquibancada, estão 'socialistas sentimentais', homens e mulheres 'egressos da escola pública' e gente que acha que 'suas profissões - escritores, gente de tevê ou executivos de agências de publicidade - os levaram pra muito longe de onde sentem que é o seu lugar ou de onde vieram, e o futebol lhes parece uma forma rápida e indolor de retorno'. Esse último tipo de gente - entre as quais talvez eu me sente numa eventual ida ao Pacaembu - ganha, a partir da leitura da carta de Cavani, um novo tipo de companheiro: o próprio jogador. O 'esporte do povo', em sua caminhada no rumo do show business, se revela, para o centroavante, um meio de distanciamento entre ele, agora jogador profissional, e Pelado. O curioso é que se gente como nós - meninos da classe trabalhadora levados para longe pelo estudo ou por qualquer outra atividade não braçal incompreensível para os nossos pais - se agarram à experiência da arquibancada, Cavani reencontra o seu lugar lá dentro do campo: 'Hay sólo un lugar en el que podrás tener esa libertad total. Y dura 90 minutos, si tienes suerte.' Essa experiência comum, de reencontro e de súbita consciência (de origem, de classe, de liberdade), que dura os 90 minutos de um jogo, é o que segue mantendo o futebol - a despeito da sua decadência e da sua transformação num campo devastado pelo capital e seus cavaleiros apocalípticos, entre os quais se destacam a corrupção, a burrice, o machismo, o racismo, a homofobia, a violência, a dinheirolatria - uma parte fundamental da experiência e da vida das classes trabalhadoras sul-americanas (no qual muitos de nós experimentam de forma mais intensa um tipo de vivência comunitária e partilhada).
É importante notar, no entanto, que Cavani sabe que Pelado, o menino, está no passado - é para lá que ele endereça a sua missiva (e não há qualquer ilusão nessa tentativa de correspondência: como naquele samba sobre todo menino ser um rei, Cavani parece consciente da realidade dos versos seguintes: 'Mas quá!/ Despertei'). Vale pensar isso tendo em vista o discurso do 'menino' criado em torno de Neymar, e que talvez estivesse em seu ápice justamente naquela Copa de 2018. Ali, a imagem do 'menino' surge, de forma paternalista, apenas para justificar a imaturidade de um jogador completamente absorvido pelo pior do jogo (e que pensa ainda como menino que se acha rei): a sua irresponsabilidade em campo, bem como o seu jogo mimado, talvez sejam sinais de um tipo de roubo da infância que, curiosamente, resulta na sua perpetuação para além do tempo da infância (como se sabe, Neymar é um caso típico do que se torna cada vez mais recorrente - assim como o foi Messi: o do menino prodígio contratado ainda criança e cuja vida, a partir dali, é um cálculo e uma aposta alta no sucesso e no lucro).
Em comparação com o 'menino Ney', pensemos, por outro lado, em Maradona - eternamente conhecido como El Pibe (e vale lembrar, aliás, que Maradona foi revelado pelo Argentinos Juniors, time de nome sugestivo, cujas origens tocam na história dos movimentos operário e socialista na Argentina). Maradona, como se sabe, teve uma carreira avassaladora, também marcada por certa irresponsabilidade. No entanto, a despeito disso, Maradona foi absolutamente genial na sua atividade: fez o gol mais bonito de todos os tempos, ganhou Copa do Mundo, mudou a história de clubes em dois continentes e, para muita gente, foi o melhor jogador da história do futebol. Esse misto de irresponsabilidade e de absoluto gênio criativo fez com que Maradona tivesse dois apelidos, um carinhoso, El Pibe de Oro (A Criança de Ouro, O Menino de Ouro, O Pivete de Ouro) e outro quase devoto, Dios - simplesmente. Na América do Sul, então, viveu um Deus que levava tatuado, em seu braço direito, Che Guevara, e, em sua perna esquerda, Fidel Castro. Um Deus sul-americano que, a despeito de não ter conquistado nenhum título da Libertadores da América, carregava dois deles tatuados no corpo. Maradona, afinal, é Deus mas também é criança, é o deus menino - como no poema de Alberto Caeiro, ele é a eterna criança, o deus que faltava, a criança tão humana que é divina (Maradona, deus e atleta de futebol, embaralha ainda mais a tendência esnobe de atualizar a frase de Marx sobre a religião ser o ópio do povo dizendo que, na verdade, o futebol é que é o ópio do povo).
Cavani não parece ter nada disso em vista para ele mesmo. Sabe que não é divino, que não tem nada a ver com Deus. Vivia a sua vida na rua, no meio da magia da pura imanência e de uma precária materialidade, com a bola nos pés, do jeito sul-americano. Agora a revive em campo, durante os 90 minutos que duram o jogo, experimentando a liberdade e o socialismo que o futebol profissional e capitalista lhe tomou no dia-a-dia, dando-lhe, em troca, tudo aquilo que devia afastá-lo da sua história e do seu lugar - a mesma história e o mesmo lugar em que muitos de nós viveram e ainda vivemos, nas ruas dos tantos 'subúrbios de ferro e gás/ onde brinca irremida a infância da classe operária', como se diz nos versos de Ferreira Gullar.