sobre Roberto Bolaño (2)


Das muitas histórias que se contam sobre a passagem de Bolaño da poesia para o romance (como se de fato isso tivesse acontecido assim, enquanto passagem), uma delas insiste na questão do dinheiro: ele teria ido à prosa porque a poesia não bastava para pagar as contas (pode haver aí um fundo moral, aliás, uma pintura de Bolaño como mercenário). De fato, um dos temas recorrentes da sua poesia é o da escassez de dinheiro, muito embora ela não apareça necessariamente implicada na atividade poética e sim na percepção de que um poeta (por acaso e às vezes o próprio Bolaño) é também um trabalhador (ou seja: Bolaño não pensa uma 'classe' poética, à qual estariam ligados, devendo lealdade ou solidariedade a ela, todos aqueles que escrevem poesia - não se trata de uma noção abstrata e sim concreta e material: há gente da classe trabalhadora que, por acaso, escreve poesia; assim como há burgueses que têm a poesia como passatempo; a poesia em si, se é que isso existe, não garante nada - algo que fica muito nítido, por exemplo, num romance como Estrela distante, no qual no espaço do 'encontro' literário, a oficina, está também o torturador; e, na verdade, isso é um dado básico e constante da obra de Bolaño: a ideia de que a literatura e a poesia não garantem coisa alguma em termos práticos, de luta ou engajamento amplo pela transformação das formas de vida social). 

Nos versos finais de “El dinero”, Bolaño afirma que escreve “este poema o esta nota que es como un pulmón/ o una boca transitória que dice que estoy/ feliz porque hace mucho que no tenía/ tanto dinero en los bolsillos”: a falta e o contentamento com o pouco dinheiro, preocupação constante e felicidade rara dos trabalhadores, é a motivação do poema, que ele hesita inclusive em classificar como tal, pensando em chamá-lo apenas de “nota”, já que consiste numa série de anotações de recebimentos e gastos com divertimentos, comida etc. 

Uma certa ocupação com questões de classe já aparecia no manifesto infrarrealista assinado por Bolaño, ainda na década de 1970: “los burgueses y los pequeños burgueses se la pasan en fiesta. todos los fines de semana tienen una. el proletariado no tiene fiesta. sólo funerales con ritmo. eso va a cambiar. los explotados tendrán una gran fiesta. memoria y guillotinas” (aqui, aliás, já está cifrado outro grande tema de Bolaño: a violência - oficial - como marca fundamental das repúblicas da América católica, cujo tempo se conta através dos funerais - um tempo cada vez mais acelerado, diga-se de passagem, algo também ilustrado pela figura do detetive que, mais do que um influxo da cultura de massa dos EUA, pode indicar a percepção de que a América Latina é, afinal de contas, um continente policial; o manifesto infra, portanto, não se afasta tanto do modelo inicial do manifesto comunista - e nem do jacobinismo anti-pacifista das prometidas guilhotinas; seu outro grande tema, a emigração, se fundamenta nesse mesmo espaço de imagem e pensamento) – e também está no centro da sua famosa conferência intitulada “Sevilla me mata”, na qual sugere que alguns autores da nova literatura latino-americana já não saíam das classes altas, mas eram filhos de trabalhadores que partiram para literatura justamente pelo medo de enfrentar as 8h de jornadas diárias de trabalho que maltrataram os seus pais (e que, nesse afã, vendem, precisam se vender - seguindo proletários, portanto). 

Não leio a poesia de Bolaño como um estágio inicial de uma obra que culminará no romance, muito menos (como quer Zurita) como um fracasso cujo rancor gera um prosador brilhante, mas sim como um dos mais bem formulados registros de uma alteração de classe no âmbito da composição da literatura latino-americana, uma alteração encarada com consciência (para desarmar a literatura e a poesia enquanto ofícios alheios às oposições de classe, enquanto panaceia abstrata pairando acima das tensões da vida social do continente), e ironia (pois que não é ingênua nem em sua atuação e nem em sua teoria, e sabe - como Florestan Fernandes, por exemplo - que o trabalho artístico e intelectual, sobretudo adentrando a universidade - a conhecida - carrega consigo um grau inevitável de aburguesamento e despolitização - ou seja: eis aí uma poesia que está sempre de olhos abertos dentro do pesadelo).