O futebol, ainda hoje, é muito praticado no amadorismo total e selvagem das várzeas, do asfalto, da areia, do concreto, da terra. Seu espaço, de fato, é praticamente ilimitado, ele se agarra a quase todas as superfícies do planeta - onde uma pessoa pode caminhar, ela pode jogar bola. Uma das minhas visões preferidas é a de dois ou três campos de futebol (identificados pelas elegantes traves de madeira) fincados nos manguezais do litoral da Bahia.
Meu pai foi um craque da várzea das quebradas de Feira de Santana e de outras cidades do interior baiano, entre o agreste e o recôncavo. Desde a sua pré-adolescência pobre e franzina, desobedecia os pais e fugia de casa para jogar com e contra os adultos, sem o luxo das chuteiras. Quando ele mesmo entrou na idade adulta, operava o torno durante a semana, na fábrica, e empilhava gols e dribles nos campos aos sábados e domingos. Sua presença nos jogos era admirada e temida. Tanto ele quanto seus amigos me contaram algumas centenas de vezes um caso em que, assim que o ônibus parou em Cachoeira, alguém do time adversário gritou em direção às janelas: 'O Cego veio?' - e, ao saber que sim, emendou: 'Então tamo lascado' (uma história que contada assim, em texto, não tem impacto nenhum, mas que provocava gargalhadas sempre que contada em voz alta). Chamavam-no Ceguinho, ou O Cego, porque usava óculos fora do campo. Lá dentro, no entanto, sabe-se lá como, meu pai enxergava tudo: era impecável no passe, abusado no drible, certeiro no gol.
Há algo de tocante nas fotografias dos times à medida que elas envelhecem. Pensamos nos belos uniformes e nas faixas que já desapareceram (meu pai contava que minha mãe, recém-casada com ele e obviamente desgostosa daquela rotina de fins de semana inteiros dedicados a rodar a cidade e a região em jogos de futebol e bebedeiras homéricas, tocou fogo em suas faixas e camisas); pensamos nos jogadores cujos nomes já esquecemos; e pensamos, sobretudo, naqueles que morreram - vê-los fisicamente ativos, mesmo que numa pose estática numa fotografia velha, e pensá-los agora mortos é um contato desagradável com a morte e compassivo com a vida.
E o que quer dizer aquela clássica pose com seis jogadores de pé ao fundo e mais cinco agachados à frente, com um deles quase sempre pondo uma mão em cima de uma bola, colocada no chão? Na fotografia do Flamengo do Campo Limpo (ou Flamenguinho), na qual meu pai aparece com a sua faixa de campeão de 1981, ele é o único que não olha para a câmera. Com as mãos na cintura, já sem os óculos, ele nem sequer poderia enxergar bem a câmera caso olhasse para ela. Mas o seu olhar é o contrário do que se diria um olhar perdido - vendo algo que só ele via, com os olhos semicerrados e esforçados dos míopes, prestes a entrar no jogo, o olhar de Ceguinho (boleiro selvagem do interior do Brasil) é o olhar que não se perde junto com os outros, que miram todos a mesma coisa (seja a câmera, a bola ou o jogador livre na cara do gol que vai chutar na trave).
Quem já pisou num campo sabe que o caminho do gol é misterioso, inexplicável e inesperado. A rigor, ele não existe: precisa ser criado. O olhar do meu pai, o olhar d'O Cego, nesta foto, é o olhar de um criador, o olhar de quem vê outra coisa, de quem vê uma alternativa, de quem vê um meio para inventar a alegria - ou para arrancá-la ao futuro, que é logo ali, aos 30 minutos do segundo tempo. O gol - o futebol - guarda essa semelhança com o socialismo (outro motivo para ser odiado nos EUA, talvez): ele é uma invenção coletiva de uma sempre nova alegria, uma alegria exigente que se equilibra entre a disciplina e a criatividade (e foi no amadorismo selvagem dos campos de futebol que Camus aprendeu a lição definitiva da sua vida: a bola nunca vem pra você por onde você espera que ela venha - e é assim que é com todas as revoluções).
No velório de Ceguinho, em 2017, André, um amigo de longa data, porém mais jovem do que ele, veio me contar sobre a felicidade que sentia quando, em dia de jogo no Campo Limpo, meu pai deixava que ele, ainda moleque, carregasse as suas chuteiras até o campo. A felicidade inventada pelo goleador e pelo seu time (mesmo que ele seja a vanguarda, há todo um time), a felicidade do meu pai, é uma felicidade que não é, nunca pode ser apenas dele: este gol só existe na partilha.
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Texto publicado no zine Pai, Pelé, Pasolini, publicado em 2018 pelo selo tremeterra. A imagem que ilustra o post é a capa do zine feita com a fotografia do time do Flamengo do Campo Limpo, campeão de 1981.