sobre uma obra de Alan Adi

 



Em 2017, com 32 anos, me mudei e vim morar num prédio pela primeira vez na vida. Hoje, quase 2 anos depois, não posso dizer que me acostumei aos modos que isso exige: tabaréu de uma cidade com verticalização quase nula (na minha infância e adolescência estive pouquíssimas vezes em apartamentos), me atrapalho com o elevador, com as campainhas, o interfone, as encomendas que chegam, as visitas que saem, os vizinhos fantasmagóricos, as formas de lidar com o meu lixo: tudo me parece estranho – e a estranheza se concentra, sobretudo, na figura dos porteiros (que, no meu prédio, acumulam também as funções de zeladoria).

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A cena é recorrente: me aproximo do prédio, espero mas não escuto o barulho do portão sendo destravado e aberto. Imediatamente fico agoniado por ter que tocar o interfone e fazer aquele barulho estrondoso que, imagino, vai acordar e assustar o porteiro que aproveitava uma calmaria qualquer no movimento de entra e sai para cochilar. De uns tempos pra cá, sobretudo quando isso acontece à noite ou de madrugada (quando, em geral, mais se teme ficar na rua uns segundos além do esperado), passei a me lembrar daquele forró cujo título é também o seu refrão: “é proibido cochilar/ cochilar/ cochilar”. Cumprimento o porteiro e subo o elevador com a melodia na cabeça.

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O artista sergipano Alan Adi tomou emprestado esse título para uma exposição que fez em Aracaju. Soube dela apenas por notícias, e retrospectivamente – tudo porque vi, dia desses, numa exposição aqui em São Paulo (À Nordeste, no SESC 24 de Maio), uma pintura sua baseada na capa do álbum do grupo de forró Os 3 do Nordeste, responsáveis pela popularização da canção no país inteiro. Num resumo ligeiro, a fotografia da capa apresenta os três músicos num banco de praça (um deles sentado, ao meio, e os outros dois mais ao lado, apoiados apenas com os pés sobre o banco) apontando uma faixa onde se lê “É proibido cochilar” (curiosamente, na foto não coube o acento do “é”, então se lê “E proibido cochilar”). No chão estão uma sanfona e um zabumba. Na pintura de Adi, os músicos desaparecem, sobrando apenas o banco, a faixa e os instrumentos. 

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A proposta visual de Adi se forma a partir de uma torção textual (ou de uma interpretação mais fina do texto da canção): a proibição que, na letra, superficialmente diz respeito a um imperativo de divertimento (é proibido cochilar porque o forró é tão bom que dançar é necessário e inevitável), é lida e reapresentada pelo artista como uma imposição e uma cobrança laboral. Contudo, vendo bem (como Adi vê), isso já está na letra, ali na figura do sanfoneiro que toca incansavelmente: “o sanfoneiro padece/ mas não pode reclamar/ se está ganhando dinheiro/ é bom dinheiro ganhar/ e ele leu na entrada/ que é proibido cochilar”. A poética de Adi, neste caso, se volta para o cotidiano dos migrantes nordestinos no Sul, sobretudo em São Paulo e no Rio de Janeiro, tradicionalmente submetidos a um regime de trabalho exaustivo – temática, aliás, muito comum na poética da migração: desde “A triste partida”, de Patativa do Assaré, passando por “Recado pro pessoal lá de casa”, de Raimundo Sodré e “Trabalhadores do metrô”, gravada por Xangai (pra ficar em apenas 3 exemplos).

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A música e o trabalho do migrante aparecem em A invenção do Nordeste, de Durval Muniz Albuquerque Jr., como meios para se perceber determinadas mudanças de paradigma sobretudo corporais: segundo o historiador, a música, no ambiente e no modo de trabalho urbano, industrial, passa de “muscular” (no sentido de que antes era sobretudo tocada e dançada) para auditiva (agora sendo apenas escutada, passivamente). “A disciplina do corpo para o trabalho industrial passa pela disciplina do ouvido (...). O corpo que cantava, dançava, tocava, vai ser reduzido a um corpo que escuta e obedece”, escreve o historiador. Bem, o sanfoneiro de “É proibido cochilar” ultrapassa os limites da leitura de Durval Muniz, já que ele ainda pratica a música, que, portanto, segue muscular – mas é justamente o seu corpo que está em jogo no trabalho artístico, estando este a um passo de se tornar ou já transformado segundo um modelo industrial. A palavra é dinheiro, é dinheiro a palavra.

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O desaparecimento dos músicos na pintura de Adi se afina, logo de cara, com a proposta de leitura de Durval Muniz: vai ver eles sumiram porque precisaram deixar de tocar para arranjar trabalho como atendentes em padarias, garçons, motoristas, operários nas fábricas, pedreiros ou porteiros – substituindo os instrumentos (sobre e em meio aos quais agiam compondo e tocando) pelo radinho de pilha, companheiro que, de certa forma, também ajudava a adiar ou impedir o cochilo.

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O radinho, no entanto, nunca foi completamente eficaz ou confiável: a depender das canções que transmitisse, poderia induzir ao sono pelos ouvidos. Por isso, hoje, vem sendo substituído pelo celular, esse sim uma espécie de arma brilhante e hipnótica, invadindo não os ouvidos, mas os próprios olhos, mantendo-os constantemente abertos, madrugada e cansaço adentro.

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O cochilo pode ser fruto da exaustão ou da preguiça. No primeiro caso, cochila aquele que já não suporta mais estar acordado e trabalhando: seu corpo simplesmente apaga e tenta recobrar um pouco de energia em alguns instantes de sono leve e superficial (é uma consequência dos modos capitalistas de habitar o mundo, que pode ser resultado do sono tal como descrito por Ederaldo Gentil em 'Identidade' - 'Acordo sem dormir', ele canta - ou por Raimundo Sodré em "Recado pro pessoal lá de casa": 'É um tal de dormir tarde e acordar cedo que eu vou te contar...'); no segundo, o cochilo é uma espécie de privilégio daquele que dispõe de uns poucos minutos para descansar porque, afinal, não tem lá muita coisa para fazer (é um modo indesejável de habitar um mundo capitalista). O sono, obviamente, é um terreno ainda em disputa: tomá-lo à força, tornando alguém insone; impedi-lo por meio de medicamentos; tumultuá-lo com as ansiedades e o medo; espantá-lo com os barulhos de sirenes, buzinas, britadeiras, tiroteios e interfones – e, ainda assim, é arrepiante pensar que, às duas e meia da manhã de uma terça-feira, a maioria da população de uma cidade imensa como São Paulo, agora, está dormindo, indiferente à rotação do dinheiro. 

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É proibido cochilar: de um mandamento irônico e divertido da festa a uma interdição do descanso e do ócio, esse refrão é um bom exemplo dos descaminhos da linguagem (sobretudo dos refrãos, dos ditos, das palavras sumárias e de ordem) submetida aos interesses do capital, de classe etc.

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E por que os instrumentos sobram, caídos no chão, na pintura de Alan Adi? A sanfona e o zabumba, sem os músicos que os toquem – o que eles significam? Restam ali em sua materialidade pura: ferramentas abandonadas, quietas, mas preservadas em sua potência de criação e desalienação. Se é verdade que o sanfoneiro, na canção, já tem em mãos a sanfona que o torna um prisioneiro do trabalho, proibido de cochilar, é também visível, na versão de Adi, um resto de confiança ou aposta nos meios para a criação como meios para a libertação. A presença dos instrumentos sinaliza, para mim, uma espécie de espera pela volta dos músicos – pela sua entrada, outra vez, num regime de criação musical, poética e artística muscular, mas não exaustiva. Os afazeres artísticos expandidos, retirados do monopólio dos artistas e espalhados entre toda uma comunidade: é isso que caracteriza a prática artística nordestina rural e é isso que se perde com a especialização, a postura passiva diante da arte e o seu enclausuramento numa indústria.

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Meu pai, um torneiro mecânico, um trabalhador de indústria, um operário no sentido antigo, cochilava no chão da fábrica após o almoço. De vez em quando, usava o seu torno para criar alguns objetos para ele mesmo, e outros que levava pra casa pra dar de presente pra sua mulher e seus filhos. Fazia cinzeiros (era um fumador inveterado de cigarros Hollywood); criava formas abstratas de aço que serviam como peso de papel; pra mim, fez um slide de metal pra eu usar no violão quando fosse tocar blues e um cuscuzeiro pra que eu pudesse comer bem em São Paulo como eu comia em sua casa, lá em Feira. Demorei a compreender essa sua subversão do tempo e da ferramenta do trabalho alienado que devia executar naquele torno – tirava uns instantes para fabricar algo para ele mesmo e para a sua família, perdia-se em formas escultóricas abstratas, em objetos que não geravam lucro nenhum e com os quais iria conviver cotidianamente em sua casa, reconhecendo-se em sua obra em uso na sala ou na cozinha ou no meu ato – desajeitado – de fazer música. A sua sabotagem era admirável e exemplar, mostrava que a própria ferramenta da alienação – o torno – podia ser desviada para um outro uso, artesanal e afetivo. E se isso foi possível com um torno, imagina com uma sanfona.

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O sono do trabalhador migrante aparece na canção ‘Meu enxoval’, gravada por Jackson do Pandeiro. Neste caso, no entanto, o personagem está desempregado e dorme ao relento, mais precisamente nas escadarias do Municipal. Num trânsito entre SP (de onde foge por causa do frio) e RJ, em busca de trabalho, o migrante enfrenta a noite na rua com os papéis dos jornais nos quais, durante o dia, procura oportunidades de emprego: ‘O meu travesseiro é um "Diário da Noite"/ E o resto do corpo fica na "Última Hora".’ A ironia é formidável – e se não encara a proibição do cochilo e do descanso diante do trabalho, retrata a precariedade do sono daquele que não trabalha, não consegue trabalho. Esta figura do lumpenproletariado, aquele que migra e '(...) dorme sob as luzes da avenida/ É humilhada e ofendida pelas grandezas do brasil' é lembrado também por Belchior em seu 'Monólogo das grandezas do Brasil', canção na qual a questão do trabalho é fundamental: "Eu quero trabalhar", canta-se a certa altura.

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Todos os porteiros do meu prédio são nordestinos, todos eles do Piauí.

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Ensaio publicado em 2019, com o título É proibido cochilar, pelo Selo Tremeterra, com capa e ilustração da artista Camila Hion. Aqui, revisto e ampliado.