sobre uma poética da migração nordestina

 


Quando o assunto é a tensão regional entre norte e sul do brasil, há uma coisa a se colocar, sempre, em evidência: o trabalho. Preparando um curso sobre a poética da migração nordestina, decidi intitular uma das aulas justamente 'Migrar dá trabalho ou é proibido cochilar' - aula inteira focada na representação do trabalho na poesia de migrantes nordestinos situados em SP e RJ, bem como na ideia de trabalho como fundamento básico dessa movimentação maciça de gente dentro do brasil (no âmbito da imigração global, Abdelmalek Sayad é conciso e certeiro, e afirma que o imigrante é, sobretudo, uma força de trabalho). 

Muito mais do que a seca - afinal, de que seca fogem os migrantes das áreas urbanas e úmidas do Nordeste? -, ou seja, muito mais do que os problemas da região de onde se parte, são as necessidades da região para onde se vai que importam nesse debate. E de que necessitava o Sul em processo acelerado de industrialização senão de trabalhadores? Identificar o migrante com o trabalho é esclarecer a sua classe e entender melhor a natureza do ódio contra ele. Qualquer pesquisa a respeito do tema revela o seguinte, por exemplo: entre as décadas de 30 e 50 havia um fluxo migratório intenso, baseado nas necessidades laborais do Sul, incentivado pelo próprio governo do estado de SP, que implementou um programa oficial de atração de trabalhadores, sobretudo da Bahia e de Minas Gerais, para as lavouras de café do estado. Nesse período foi criada inclusive uma Inspetoria dos Trabalhadores Migrantes, que tinha como função contratar e facilitar a vinda de nortistas para a região, arcando com custos de passagens e bagagens. 

Insistir em questões sobre imaginário ou identidade cultural não basta para compreender essa questão, que é básica para o desenvolvimento do capitalismo brasileiro (a migração não parou, aliás) e os seus modos de atuação no próprio Nordeste, dominado por uma elite política, econômica e cultural extremamente violenta, racista e inimiga das classes trabalhadoras da região (uma burguesia que supostamente se identifica 'cultural' e 'imaginariamente' com os signos do Nordeste, sobretudo aqueles de extrato 'popular', mas que não participa das realidades materiais que os geram - ao ponto de sequer ser justo dizer que vivem nas mesmas cidades - e que, além disso, é quem promove essas realidades no que elas têm de desigualdade e injustiça; e o Nordeste, insisto, é uma realidade material baseada numa desigualdade que torna possível que, nesta pandemia, 42% da população do semi-árido esteja em situação de 'insegurança alimentar', esse eufemismo). 

Não por acaso, o campo de expressão mais fértil para a xenofobia anti-nordestina, nos últimos tempos, é o anti-petismo - encarnado, por um lado, na figura de Lula (o trabalhador e migrante nordestino dos subúrbios de SP) e, por outro, nos eleitores do Nordeste, tomado como curral eleitoral amparado em assistencialismo. 

Poeticamente, tudo isso foi refletido sobretudo na canção e no cordel (que, aliás, foi um instrumento comum dentro dos sindicatos de SP, para além do uso feito por Gullar em seus rolés pelo CPC). A poesia tradicional do livro, excetuando-se um ou outro caso - o mesmo Gullar, por exemplo - ignorou a questão, o que diz algo sobre quem pratica essa arte, a qual classe ela pertence ou pertenceu. O curioso é que se se pensa nos artistas, a vinda significa justamente um afastamento da fábrica, a entrada numa suposta classe artística e, como canta Tom Zé (em 'Aburguesar', canção gravada por Juliana Linhares), um pequeno aburguesamento (pela terceira vez, lembro o nome de Gullar). Isso, vale dizer, não tem nada a ver com a releitura burguesa supostamente subversiva de signos da migração como o retirante, a seca, o trabalho, a preguiça, e nem há de se remediar com a associação romântica e direta entre poeta e trabalhador (ou, mais exatamente, na representação do poeta como trabalhador) - coisas que também ocorrem em poemas recentes. 

No entanto, volto a 'É proibido cochilar', cujo título inspirou minha aula, composta por Antônio Barros e popularizada pelo grupo Os 3 do Nordeste, uma das obras que mais gosto pra pensar tudo isso, na qual se vê o 'trabalhador da cultura', o músico nordestino, submetido a um regime de exploração que, em tese, estaria reservado àqueles alocados nas portarias, nos ônibus, nas oficinas, nas cozinhas e nas indústrias (não a cultural) de SP - nela, o estribilho 'É proibido cochilar', um refrão jocoso pro público que vai dançar o forró, se torna uma exigência para o sanfoneiro, nesse final inesperado da canção, numa ampliação de foco brilhante e muito elegante (mediada pelo dinheiro bom, e difícil, de se ganhar): "A poeira sobe, o suor desce/ a gente vê o sol raiar/ o sanfoneiro padece/ mas, não pode reclamar.// se está ganhando dinheiro/ é bom dinheiro ganhar/ e ele leu na entrada/ que é proibido cochilar". Eis um refrão significativo para o porteiro ou o operário que o escuta em seu radinho de pilha, no meio do trabalho.