O vagabundo e o trovador são duas figuras fundamentais da poesia de Roberto Bolaño - uma poesia da qual se costuma destacar, em geral, a figura do detetive (selvagem ou latino-americano). Esse destaque certamente se deve às relações que o detetive pode promover entre a poesia e a prosa do autor chileno, um alento para a tendência - dominante na teoria e na crítica - de tentar resolver o problema poético de Bolaño através da narrativa. Isso é perceptível, por exemplo, em falas como a de Zurita (para quem a mediocridade da poesia de Bolaño resulta na grandeza da sua prosa) e em apreciações como a de Matías Ayala, que afirma coisas como 'Cuando asume una voz completamente ficcional, como en la serie de poemas sobre detectives de Los perros románticos, o el poema narrativo los 'Neochilenos' (publicado en Tres), el autor parece haber hallado ‘el registro Bolaño’'. Aí há uma aposta segura na ideia de que o autor encontra a sua voz na medida em que assume a narrativa enquanto forma para a sua expressão. Curiosamente, o seu registro, a sua característica (que só pode ser pessoal, visto que inclusive carrega o seu próprio nome) vem por meio da ficção narrativa, da criação de personagens etc.
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Quando a poesia aparece no ensaio 'Da violência, da verdadeira violência', no qual Marcos Natali lê o conto 'El Ojo Silva', ela tem algo de fantasmal: surge nos rodapés, discretamente, um tanto intrusiva – mas é justo por isso, porque é um fantasma no texto, que ela é decisiva sobretudo para se pensar uma espécie de ameaça. Num trecho do ensaio, por exemplo, e bem no rodapé (de onde talvez o texto se sustente), é um poema, aquele 'Mi carrera literaria' (em que se descreve um poeta escrevendo poesia no país dos imbecis e sendo recusado por inúmeras grandes editoras), que faz surgirem as seguintes dúvidas: 'Se nos fosse revelado que é o inferno o que nos aguarda no fim do percurso, restaria a questão da relevância de percorrer o trajeto com o filho no colo – e escrevendo. Haveria aí uma fórmula, uma teoria da literatura? Se houver, parece ser algo como o seguinte: embora seja comum em muitas tradições literárias a crença na imunidade da literatura ao horror, nem nela se escapa da violência'. Natali, aqui, reitera a centralidade da violência na produção de Bolaño (bem como a relação profunda da literatura com esta violência) e, ao mesmo tempo, tenta divisar pistas, caminhos, sinais que, por menores que sejam ou pareçam, acenem para qualquer possibilidade de escapar desta mesma violência - escapar do inferno ao fim do percurso, imaginar um futuro distinto, outro lugar mais a frente. Isto apesar de 'El Ojo Silva' trazer, logo nas primeiras linhas, justamente uma afirmação contrária a essa busca (que é, no fim das contas, uma esperança): '(...) de la violencia, de la verdadera violencia, no se puede escapar', escreve Bolaño.
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Entre os poemas que assombram o texto de Natali não aparece um cujo verso inicial, tornado seu título, é 'Colinas sombreadas más allá de tus seños' – ao qual chego, primeiro passo e logo mais retorno e me demoro por conta do seu quarto verso e do seu desfecho:
Colinas sombreadas más allá de tus sueños.
Los castillos que sueña el vagabundo.
Morir al final de un día cualquiera.
Imposible escapar de la violencia.
Imposible pensar en otra cosa.
Flacos señores alaban poesía y armas.
Castillos y pájaros de otra imaginación.
Lo que aún no tiene forma me protegerá.
Na organização feita por Bolaño para La universidad desconocida, este poema aparece na seção 'Tu lejano corazón', encerrando a 'Primera parte' do livro – que pode ser descrita como a menos narrativa dessa compilação, com poemas em geral mais curtos, predominantemente em versos. Não por acaso, a 'Segunda parte' já se inicia com uma série de poemas em prosa nas seções 'Tres textos' e 'Gente que se aleja' para chegar, na 'Tercera parte', aos poemas mais narrativos, inclusive com elaboração de personagens, como aqueles inicialmente publicados em Los perros románticos. É na primeira parte (onde está o poema citado acima), portanto, que menos se encontraria, no dizer de Matías Ayala, o registro Bolaño - e é aí que, segundo a minha leitura, se encontra o maior brilho da poesia de Bolaño.
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O detetive é também o vetor pelo qual mais se encara esse problema que tanto interessa a Natali em seu texto, o problema da violência no texto de poeta e narrador chileno. Embora evidente e fundamental, pois que ligado a uma tradição de literatura policial (o que leva críticos mais atentos, como Tiago Pinheiro, a especular sobre uma poesia policial), não é o único - pois, como se vê no poema acima, tanto a vagabundagem quanto o trovadorismo (quase sempre associados na poesia de Bolaño) guardam ligações com as ideias do autor chileno em torno da relações entre literatura e violência, aqui saindo do subgênero da literatura policial (de origem recente, contemporânea) e indo em direção aos inícios da poesia europeia, o trovadorismo.
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Esta 'Primera parte' de La universidad desconocida é marcada pela repetição de temas, recursos, imagens. Seu vocabulário é bastante reduzido e específico, reiterativo – um pouco ao modo do que ocorre na 'Tercera parte' com a figura do detective e do policial e com a palavra latinoamericano (apesar de que o detective e o latino-americano já aparecem em alguns dos primeiros poemas do livro). Nesta parte inicial, a ciudad extranjera é uma constante; Barcelona é sempre nomeada; a vagabundagem, a pobreza e a falta de um lugar social específico e validado para o poeta são pensadas e repensadas; os castillos são comuns na paisagem, pintadas quase sempre nos atardeceres da Europa; a violencia é uma questão que persiste – e os trovadores provençais são as figuras que atravessam, com suas histórias de vida mais do que com as suas obras, quase tudo isso que vai e volta nos poemas de Bolaño.
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Creio que há muito o que se especular e criar acerca da predileção de Bolaño pela figura do trovador, encarnada sobretudo em Guiraut de Bornelh, cujo nome ele chega a tomar emprestado para intitular uma das seções do livro. Como se sabe, a tradição provençal conhece tanto as canções, que se convencionou chamar poemas, quanto a narrativa das vidas e dos trabalhos dos trovadores, reunidas sob a nomenclatura de Vidas e Razos. Essa passagem da poesia à prosa na cultura provençal me parece de interesse para se pensar a passagem simulada por Bolaño em Os detetives selvagens. Tome-se, por exemplo, a seguinte afirmação da pesquisadora Elizabeth Wilson Poe acerca da natureza das Vidas: 'Different biographers selecting different elements from the various sources at hand could effectively construct disparate lives for a single troubador. For example, Marcabru is portrayed in one vida as an abandoned child and in another as the acknowledged son of a lady called Na Bruna' – e em seguida relacione-se isso ao que se passa ao longo dos diversos relatos sobre Ulises Lima e Arturo Belano, nos quais eles às vezes são poetas, outras traficantes, às vezes são homossexuais, às vezes são heterossexuais e outras assexuados etc. Wilson Poe lê a transição do verso à prosa provençal como uma questão de alteração da pessoa que enuncia o discurso, que passa da primeira para a terceira e acrescenta: 'Thus, the vidas and razos project a very different world from that of the cansos. Focusing on third-person figures, they refer primarily to a reality outside themselves'. Eu diria que o processo narrativo no âmbito provençal, para ela, se assemelha ao processo ficcional tal como Ayala o observa na trajetória de Bolaño (ainda que Poe evite julgamentos de valor, algo que, no caso de Ayala, é central). Há que se sublinhar, no entanto, que não se pode dizer, com tanta certeza, que os relatos da segunda parte de Os detetives selvagens se refiram a uma realidade exterior àqueles que relatam (e dizer isso é questionável mesmo a respeito das Vidas e Razos). A prosa provençal guarda, de todo modo, a canção – ela é o disparador do texto que, de certa forma, a suplanta e a supera, como se abrisse a própria cova. Mas esse texto, essa prosa, segue assombrado por um espectro - o espectro da poesia.
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Um outro aspecto obviamente importante (mais destacado pela crítica e pelo próprio Bolaño) é o fato de que os trovadores foram, em geral, viajantes, errantes - vagabundos. Parece que, para Bolaño, o trovador representa perfeitamente a proposta que ele faz aos jovens poetas latino-americanos em seu manifesto infrarrealista (“O.K./ DÉJENLO TODO, NUEVAMENTE/ LÁNCENSE A LOS CAMINOS”) - jovens poetas que talvez devessem ser, para ele, como Cercamon, o trovador cujo nome deriva justamente das suas andanças e procuras pelo mundo. Daí o desejo de
No enfermarse nunca Perder todas las batallas
Fumar con los ojos entornados y recitar bardos provenzales
en el solitario ir y venir de las fronteras
A travessia das fronteiras, nesta poesia, é uma atividade que diz mais respeito aos vagabundos e aos trovadores do que aos detetives - e na qual a violência (neste caso, a violência das batalhas perdidas) também está presente. A constante migração dos sujeitos poéticos de Bolaño é, no geral, lida como um imperativo da aventura - mas é também, e talvez ainda mais, uma consequência da pobreza e da procura pelo trabalho. Diversos relatos de Os detetives selvagens apontam para a busca pelo trabalho como o motor para uma peregrinação que não é religiosa nem poética, mas prática, materialmente e não espiritualmente motivada, e as passagens entre proletariado e lumpemproletariado, constantes na trajetória de Bolaño, já estavam presentes no primeiro manifesto infra:
-Los infrasoles (Drummond diría los alegres muchachos proletarios).
-Peguero y Boris solitarios en un cuarto lumpen presintiendo a la maravilla detrás de la puerta.
-Free Money.
). Além disso, este temor da doença, expressa no desejo - que abre o poema, aliás - de 'No enfermarse nunca', reaparece em contexto trovadoresco (agora catalão) e migrante também em outro poema, e aqui mais nitidamente relacionado à condição de pobreza: 'Asuntos trovados por Joan Airas te ocupan ahora/ Pobre y libre y paranoico/ El único bulto oscuro cercano a tu lecho/ es la mochila/ Ruego a Dios que no te enfermes'.
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'Como en una vieja balada anarquista', poema publicado ainda na década de 1970, apresenta bem esta equação entre a aventura desejada e a partida compulsória. A certa altura, Bolaño escreve sobre 'Los verdaderos poetas tiernísimos/ metiéndose siempre em los cataclismos más atroces', o que parece destacar o caráter voluntarioso dos poetas se lançando aos caminhos, em busca da experiência (que talvez resulte em versos); mais adiante, no entanto, é a realidade forçosa das imigrações que aparece, retratada com referências a situações políticas e econômicas envoltas em abandono e alguma miséria (os poetas, neste ponto, já não se lançam ou se metem na aventura particular alheios à realidade econômica que habitam): '(...) después de los Carros/ Blindados/ la gente empieza/ a planear nuevos motines/ La Fronda/ La Resistencia/ La Clandestinidad/ Las largas filas de la emigración/ Y los poetas apoyados contra un abedul/ mientras la nieve cae lentamente/ y los niños cubriéndose/ con pieles de coyote/ (cubriéndose con periódicos/ apoyándose unos en otros)/ emigran/ Emigran. Emigran.'
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'Colinas sombreadas más allá de tus sueños./ Los castillos que sueña el vagabundo.' são versos que situam o poema que citei mais acima, a propósito do texto de Natali, ainda no âmbito dessa paisagem medieval e trovadoresca, já que tanto as colinas quanto os castelos (e a vagabundagem) são usados reiteradamente por Bolaño em suas obras situadas sob esse marco, sobretudo nos cinco poemas que compõem a seção 'Guiraut de Bornelh', da qual gostaria de observar mais atentamente o seguinte:
No esperes nada del combate.
El combate busca la sangre.
Y se justifica com la sangre.
Detrás de las piernas de la reina
Dulcemente abiertas a la verga
Del rey, se mueven las cabanas
Quemadas, los cuerpos sin cabeza,
La noble mirada hechizada por la muerte
Aqui há uma presença mais contundente de imagens violentas, neste caso relacionadas a uma cena sexual entre nobres. Como se sabe, os trovadores eram intimamente ligados à nobreza europeia da Idade Média, em geral vivendo sob os seus cuidados, como protegidos, e emprestando seu talento para os divertimentos de reis, rainhas e príncipes. Bornelh, segundo sua Vida e Razos, era um homem pobre, mas abrigado num castelo rico, e que deu aos seus familiares tudo aquilo que conseguiu ganhar com o seu trabalho e as suas viagens. Certos trovadores, ainda, eram guerreiros, às vezes envolvidos em batalhas como as Cruzadas. Haveria aqui, neste poema, uma indicação das ligações possíveis entre Guiraut (a poesia?) e o poder, entre Guiraut (a poesia?) e a violência?
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O apreço de Bolaño pelo trovadorismo medieval, portanto, revelaria não apenas o seu apego à aventura, à vida errante e romântica dos trovadores, mas a sua atenção às antigas e ambíguas relações entre poesia e poder (e sua violência), no ponto em que há talvez algumas das intersecções iniciais entre poesia e morte na tradição europeia, como diz em 'El poeta no espera a la dama', outro poema de acento medieval:
Kürnberger. Cuando por los reinos
de Europa se paseaba la muerte.
Y en los bardos había ánimo para
renovar la lírica. Sentado
en una cámara del castillo
al que han puesto sitio nuevamente.
Y un poema de amor
de una “soberana indiferencia”.
Cuando alguien, tal vez un cortesano,
grita una advertencia inaudible
al final de un pasillo de piedra
que otra vez se diluye
en la intersección de la muerte
y el poema
- no qual há, outra vez, a sobreposição de cenas violentas (o passeio da morte, o castelo tomado) e uma imagem amorosa, neste caso o poema indiferente ou resistente àquilo que o contorna e talvez o conforma - afinal, a confluência entre o passeio da morte pela Europa e o ânimo dos poetas para a renovação da lírica pode ser lido tanto como uma crítica à indiferença diante da violência quanto uma resistência ao seu domínio total (muito embora o final do poema tenda a justificar muito mais a primeira leitura, visto que morte e poema podem se tornar uma coisa só, encontrando-se numa intersecção).
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Pois então: é 'Imposible escapar de la violencia.' Compondo esse tema – que é inclusive uma obsessão, já que logo em seguida se lê 'Imposible pensar en otra cosa.' – surge ainda a imagem dos senhores flacos elogiando, a um só tempo, poesia e armas. A meu ver, essa aproximação vai longe daquela proposta e formulada em outros momentos da obra de Bolaño, na qual o poeta é um guerreiro ou guerrilheiro tocado pela coragem. Não me parece ser este o paradigma evocado aqui, assim como naquele caso dos famosos versos em que poesia e violência (na imagem de uma navalha) são comparadas pelo autor: 'La violencia es como la poesía, no se corrige/ No puedes cambiar el viaje de una navaja/ ni la imagen del atardecer imperfecto para siempre', neste caso pelo viés da fatalidade.
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O trovador, portanto, é essa figura singular e contraditória, reunindo ao mesmo tempo a face do guerreiro poético, admirada e perseguida por Bolaño (o guerrilheiro, aliás, já era evocado desde o seu manifesto infra, no qual se diz que 'El verdadero poeta es el que siempre está abandonándose. Nunca demasiado tiempo en un mismo lugar, como los guerrilleros, como los ovnis, como los ojos blancos de los prisioneiros a cadena perpetua', uma formulação muito representativa da ideia de poesia de Bolaño, onde aparecem as migrações, os ovnis como figuras singulares da cultura de massas, a violência da guerra e das prisões, a fatalidade), mas também a face do guerreiro a serviço do poder e da violência oficial (recordar-se, sempre, do poeta de vanguarda e torturador a serviço da ditadura chilena de Estrela distante).
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Mas, se é 'Imposible escapar de la violencia.', e essa violência forma inclusive a literatura e a poesia, é importante olhar para a pergunta de Natali: 'Professado o sentido daquilo que virá, e que é justamente o inescapável, por que insistir em narrar? Ou então, dobrando o problema do comando de um princípio organizador sobre a questão dos limites da liberdade da leitura: para que ainda ler?' Para desatar esse nó, Natali decide interrogar aquilo que chama de 'sobra' – pois na escrita de Bolaño '(...) há conflitos recorrentes entre um princípio sombrio, frequentemente reconhecido e anunciado explicitamente no texto, muitas vezes já no início do relato, e aquilo que sobra dele'. A sobra, obviamente, varia: de conto para conto, de romance para romance, de poema para poema, as possibilidades de experiência são diversas – haverá talvez casos em que nada sobre? Outros em que a sobra está já no começo, em que é dela que se parte e se inicia a aventura e a migração?
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A pergunta é: o caráter sombrio, que Natali reconhece como ponto de partida do relato (e que se pode dizer que é também o ponto de partida do poema), pode ser iluminado mais pra frente, transformando a simples e acomodada espera por um desfecho melancólico marcado pela falta de alternativas numa complexa e ativa esperança por outra coisa futura? A leitura hegemônica da obra de Bolaño como um relato do fracasso conduz a aporias apreciadas pela crítica e pela teoria, mas está longe de se configurar como o único caminho possível para a entrada e os passeios por seus textos. Embora a melancolia apareça com a sua força típica, a vitalidade do projeto de Bolaño é evidente demais para ser eludida. Afirmar, por exemplo, que Os detetives selvagens é um relato de um fracasso duplo, das vanguardas heroicas e da sua própria geração de vanguardistas tardios é, no mínimo, uma afirmativa parcial, que desconsidera talvez o fruto mais maduro e de sabor mais forte tanto de uma quanto de outra: a própria obra de Bolaño. Tinajero, ao contrário do que dizem Carral e Gabirotto, não representa um rompimento 'a un tiempo con la vanguardia y con la revolución', mas sim um compromisso com ambas. Sua ida ao deserto pode ser lida como uma metáfora a ser esclarecida por versos como estes, do próprio Bolaño:
(...)
Dice el saltimbanqui: éste es el Desierto.
El lugar donde se hacen los poemas.
Mi país.
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As migrações de Bolaño (de Chile a México, de América Latina a Europa, de verso a prosa, de poesia a narrativa), o seu solitário e ir e vir entre as fronteiras de territórios ou gêneros textuais (recitando os bardos provençais) – tudo isso, ao meu ver, aponta para esse aspecto determinante da sua obra, que é o de divisar, entre brechas ou mesmo destroços, outra coisa que não é o Chile ou o México, não é a América Latina ou a Europa, não é o romance ou o poema, não é a violência. Outra coisa que é bem definida por outro verso do próprio Bolaño naquele poema ameaçador em que a violência (o ponto de partida) é dada como inescapável mas que, ainda assim, se encerra com uma promessa de proteção, proteção esta assegurada não pela forma do poema (note-se que este mesmo poema se apresenta com uma sequência sumária de frases, todas marcadas por um ponto-final, sem nenhum sinal de que a tradição do enjambement - essa que, para muitos, é o signo definitivo da linguagem poética - esteja guiando a sua criação), que dirá pela forma do romance!, e sim por outra coisa, ainda desconhecida – mas em constante formulação, cuja fatura é presente mas cujo resultado é futuro (um futuro talvez guiado apenas pela aventura, não mais pela pobreza - ou pela violência): lo que aún no tiene forma me protegerá.
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A certa altura do seu manifesto infra, Bolaño fala da sua - da nossa - época como '(...) una época en que nos acercamos a 200 kph. al cagadero o a la revolución.' As duas opções estão dadas: o cagadero ou a revolução. Uma tem a forma fixa e fixada, por demais conhecida, e a outra, ao contrário, ainda precisa ser inventada (sua forma deve ser descoberta, como foram descobertas, em revoluções anteriores, formas como a comuna) - e é não mero acaso que, na sequência, Bolaño recorra à figura e à palavra de Brecht justamente para afirmar qual o caminho divisado por sua estética e sua ética: '"Nuevas formas, raras formas", como decía entre curioso y risueño el viejo Bertolt'.