sobre alguns poemas de Ricardo Aleixo

 


O que é (e quanto vale) um poema no meio de mundo repleto de mercadorias? Dentre as inúmeras tentativas de se aproximar de uma resposta a isso, gosto de uma que foi formulada por Ricardo Piglia num texto que diz tratar do conto mas que, seguindo uma tradição latino-americana de teorias do conto, trata do poema. Nas suas "Novas teses sobre o conto", o escritor portenho vai até uma história contada por Italo Calvino nas Seis proposta para o próximo milênio e escreve: "Entre muitas virtudes, Chuang-Tsê tinha a de ser hábil no desenho. O rei lhe pediu que desenhasse um caranguejo. Chuang-Tsê respondeu que precisava de cinco anos e uma casa com doze criados. Passaram-se cinco anos, e o desenho ainda não estava começado. ‘Preciso de outros cinco anos’, disse Chuang-Tsê. O rei os concedeu. Passados dez anos, Chuang-Tsê tomou do pincel e, num instante, com um único gesto, desenhou o caranguejo, o caranguejo mais perfeito que jamais se tinha visto". A propósito disso, Piglia conclui: "Como o relato trata de um artista, seu núcleo básico é o tempo e as condições materiais de trabalho: nesse sentido, o conto é um tratado sobre a economia da arte. Firma-se um contrato entre o pintor e o rei: a dificuldade reside, recordemos Marx, em medir o tempo de trabalho necessário numa obra de arte, e portanto a dificuldade de definir (socialmente) seu valor. A arte é uma atividade impossível do ponto de vista social, porque seu tempo é outro, sempre se demora muito (ou muito pouco) para 'fazer' uma obra".

A ida a Marx e a indagação em torno das "condições materiais de trabalho" esbarram, naturalmente, no contexto do relato, que está longe de uma realidade conformada por relações capitalistas. Chuang-Tsê não pede, por exemplo, um salário - e, na verdade, o que me chama atenção entre as suas exigências ao rei é este número excessivo de doze criados (aos quais, certamente, deve delegar os trabalhos cotidianos, de cuidados domésticos e serviços). Aqui não parece se revelar tanto a impossibilidade da atividade artística "do ponto de vista social" - e sim, ao contrário, um modo dela se tornar possível, criando relações de trabalho em torno da sua fatura. Súbito, o heroísmo romântico de Chuang-Tsê (cuja lida com o tempo de produção é lida por Piglia - não em razão, diga-se - como um desafio à ordem do tempo do capital) já não parece tão heroico ou romântico assim: durante dez anos, o artista foi servido por nada menos do que doze criados (a venda singular do tempo de trabalho Chuang-Tsê, portanto, está íntima e materialmente ligada à venda nada singular do tempo de trabalho dessas doze figuras anônimas). Se a distância do contexto capitalista ou salarial (o artista, aqui, está muito mais próximo das relações de mecenato) não impede que Piglia evoque Marx e o tempo do capital, também não me impede de perceber, no relato, uma lição sobre o papel da arte nas relações de trabalho.

A tal impossibilidade da arte (e do artista) "do ponto de vista social" identificada por Piglia, no entanto, é um dado constituinte da reflexão e da prática artística pelo menos desde que o desenvolvimento do capitalismo consolidou tanto um novo tipo de relação de trabalho quanto uma nova divisão das classes - organizando, por tabela, uma nova luta entre elas. Compilar e comentar os modos como, sobretudo através da metáfora e da comparação, os artistas tentaram se associar às classes (aproximando-se da classe trabalhadora, em sua maioria, mas flertando também com algo mais antigo, abrigando-se numa ideia velha de aristocracia) seria tarefa pra uma tese de centenas de páginas - o que impede que o faça aqui, mas também revela a importância do tema. Ainda assim, importa lembrar uma elucidativa reflexão de Adorno a respeito da atração de intelectuais e artistas pela aristocracia: "O que atrai nos aristocratas e atrai alguns deles para os intelectuais e algo de uma simplicidade quase tautológica: o fato de que não são burgueses" - de modo que o alheamento do aristocrata ao jogo baixo do comércio e da troca (ele é alguém, segundo Adorno, que "não exerce mais nenhum poder político e raramente algum poder econômico") atrai porque promete uma oposição à burguesia, mas, diga-se, uma oposição que diz respeito à impotência política e econômica: opta pela inércia no presente ou pela evocação retrógrada do passado.

No âmbito do pensamento teórico, essa situação está no centro da reflexão de Jacques Rancière sobre o romance realista e no modo como, para o filósofo, esse romance representa uma ruptura da antiga e dura partilha do sensível. Rancière vai à crítica imediata do realismo e encontra o nó em torno do excesso descritivo do romance e da sua relação justamente com as ideias de tempo para a produção fabril e de tempo para a produção artística (e para o lazer da burguesia): "O artista tornou‑se um trabalhador. Ele carrega suas sentenças adiante, diz Barbey, da mesma forma que o operário carrega suas pedras adiante num carrinho de mão. A comparação mostra que essa nova cosmologia ficcional é também uma nova cosmologia social." A eleição do romance pela burguesia e, logo, pelo mercado editorial terá algo que ver com isso? O romance, como se sabe, encaixa-se mais facilmente numa lógica temporal da produção capitalista - basta pensar que jamais se poderia substituir o desenho do caranguejo de Chuang-Tsê pela escrita de um romance.

O poeta e a poesia, por sua vez, guardam ainda outra oscilação, para além daquela entre classe trabalhadora e aristocracia - que é a associação ora ao proletariado, ora ao lumpemproletariado. Em obras de voltagem mais realista (ainda procuro uma palavra melhor) como a de Nicanor Parra, o poeta é sobretudo um proletário, um operário, um trabalhador (às vezes é também um cientista). No seu "Manifiesto" (que sem dúvida dialoga com o Manifesto do partido comunista, que é quem abre a tradição moderna desse gênero), Parra afirma que a poesia é um "artículo de primera necesidad" e diz ainda que o poeta é um pedreiro e um construtor de portas e janelas, "un hombre como todos". É curioso porque esse referencial "construtivista" cairia bem, talvez, na tradição da poesia concreta brasileira - mas não é o caso. Quando Haroldo de Campos parece mais concentrado na obra de Marx, no A educação dos cinco sentidos, o poeta não aparece como um trabalhador, não está ligado a uma ideia de proletariado que lida, ao seu modo, com a construção. Sua escolha é pelo lumpem (muito embora Marx, como se sabe, não tivesse lá muita estima por essa classe):

(...)

poesia pois é
poesia

te detestam
lumpemproletária
voluptuária
vigária
elitista piranha do lixo

(...)

- ele escreve num poema em que ainda afirma, também sobre a poesia:

dizem que estás à direita
mas marx (le jeune)
leitor de homero dante goethe
enamorado da gretchen do fausto
sabia que teu lugar é à esquerda
o louco lugar alienado
do coração

Os versos desta "Ode (explícita) em defesa da poesia no dia de São Lukács" certamente se ajustam à pesquisa de Haroldo em torno das relações entre poesia e pobreza, que ele identifica - num ensaio famoso que vai de Machado de Assis até Augusto de Campos, passando por Oswald de Andrade e Graciliano Ramos - no ramo mais vital da criação literária brasileira, ali onde acontece também uma espécie de luta de classes: "O pobre contra o rico. O menos contra o mais". Seu ensaio chega a Augusto de Campos e à dicotomia luxo/lixo (sendo que é no lixo que, no poema visto acima, ele coloca a poesia), na qual Haroldo aponta para o caráter paródico que é, sobretudo, crítico do excesso que a riqueza representa.

Há um trecho muito famoso de Bataille e outro não tão célebre poema de Augusto de Campos que talvez ilustrem ainda mais o movimento proposto por Haroldo. De Bataille, é o seguinte: "O verdadeiro luxo, e o profundo potlatch do nosso tempo cabe ao miserável, quer dizer: àquele que se estende na terra e despreza. Um luxo autêntico exige o desprezo completo das riquezas, a sombria indiferença de quem recusa o trabalho e faz da sua vida, por um lado um esplendor infinitamente arruinado, por outro lado um insulto silencioso à mentira laboriosa dos ricos". Obviamente, há muito o que se pensar e questionar em torno da ideia de Bataille de uma "recusa", mas sigamos para o poema de Augusto, que está no seu "Bestiário":

mais
baixo
que
o
lixeiro
que
cheira
a
lixo
mas
ao
menos
tem
cheiro
o
poeta
lagartixa
no
escuro
bicho
inodoro
e
solitário
em
seu
labor
atório
sem
sol
ou
sal
ário

O poeta é uma figura que constantemente aparece na poesia de Augusto em algum lugar negativo, sobretudo do morto - mas não apenas, como se vê nesse caso, no qual o poeta é aquele cujo labor não reconhece nada e não é reconhecido, permanecendo sem sol ou salário, mas ainda assim vivo. O poema, ao modo do "estilo pobre" pensado por Haroldo, segue operando sob o "sinal de menos" ou da falta verbal (uma palavra só por verso, às vezes meia palavra por verso), mas numa espécie curiosa de acumulação visual – apesar de curto, a disposição dos versos faz com que o poema pareça longo, empilhando-se as palavras na página. Este poeta, na hierarquia dos ofícios, está abaixo do lixeiro (cuja fundamental atividade é tradicionalmente desvalorizada) - muito embora pratique seu labor num laboratório, sem dúvida um território de especialistas.

Mais adiante na obra de Parra, o poeta - na figura do cantor - também se afasta do pedreiro e do construtor e chega ao lumpem, neste caso a um mendigo que circula pela cidade sem "tener un oficio conocido", ao contrário dos outros cidadãos: "Cada uno conoce su negocio./ ¿Y cuál creen ustedes que es el mío?// Cantar/ mirando las ventanas cerradas// Para ver si se abren/ Y/ me/ dejan/ caer/ una/ moneda." Os mendigos talvez sejam mais caros a uma tradição católica do que socialista, como bem reconhece Benjamin numa passagem da Rua de mão única, mas a sua condição não deixa de ser - como pretendia Bataille - uma rememoração constante do fracasso das nossas sociedades: "Apresentam-se queixa sobre os mendigos do Sul e esquece-se que sua persistência diante de nosso nariz é tão legítima quanto a obstinação do estudioso diante de textos difíceis". Reis, aristocratas, príncipes, operários, mendigos - a inquietação da poesia sobre o seu lugar na sociedade, como se vê, resulta numa busca febril por estabelecer relações com aqueles que têm um ofício conhecido - como os doze criados de Chuang-Tsê.

Mas, embora não pareça, este é um texto sobre Ricardo Aleixo. Isto porque ele publicou, em seu livro Máquina zero, de 2004, um poema que diz muito - e de forma muito original - sobre essas coisas que venho tentando detectar na antipoesia chilena e na poesia concreta brasileira. O poema se chama "Paupéria revisitada" e é, certamente, uma das suas obras mais célebres, constantemente citada e republicada em revistas, estudos, redes sociais etc. Não estranha, já que "Paupéria revisitada" traz muito do que Aleixo faz de melhor em sua poesia, a saber: a reimaginação da função social da poesia e do lugar social do poeta por meio de uma linguagem a um só tempo musical e pensante. De fato, a poesia de Aleixo revela a contiguidade entre essas duas coisas (música e pensamento) - e o que nele canta está pensando, de modo que os seus versos encenam uma discussão rítmica, no âmbito da poesia brasileira, cujas repercussões, a meu ver, só parecem ter paralelo recente com o trabalho de Cabral em torno da rima toante.

"Paupéria revisitada" se insere, sem dúvida alguma, nos debates e nas especulações levantadas pelos poemas, poetas e filósofos que já passaram por esse texto. Veja se não:

Putas, como os deuses,
vendem quando dão.
Poetas, não.
Policiais e pistoleiros
vendem segurança
(isto é, vingança ou proteção).
Poetas se gabam do limbo, do veto
do censor, do exílio, da vaia
e do dinheiro não).
Poesia é pão (para
o espírito, se diz), mas atenção:
o padeiro da esquina balofa
vive do que faz; o mais
fino poeta, não.
Poetas dão de graça
o ar de sua graça
(e ainda troçam
— na companhia das traças —
de tal “nobre condição”).
Pastores e padres vendem
lotes no céu
à prestação.
Políticos compram &
(se) vendem
na primeira ocasião.
Poetas (posto que vivem
de brisa) fazem do No, thanks
seu refrão.

A distinção mais notável, a meu ver, está no fato de que Aleixo não propõe relação alguma entre a atividade do poeta e a dos outros trabalhadores que aparecem para compor o poema. Ao contrário: o poeta aparece sempre em oposição - ele não é como a puta ou o padeiro, o policial ou o pistoleiro, os pastores ou os políticos. Sua afirmação do lugar específico do poeta, no entanto, passa longe de qualquer intenção aristocratizante. Desde o seu início, o poeta já está afastado dos deuses (mais do que as putas estão, inclusive), e se o "Manifiesto" de Parra se inicia com a afirmação categórica de que "Los poetas bajaron del Olimpo", este "Paupéria revisitada" faz o mesmo movimento, porém com muito mais sutileza, uma sutileza certamente avessa aos manifestos. 

Aleixo, então, não procura metáforas, e inclusive as ridiculariza (como na passagem sobre a poesia ser o pão, ou naquela outra sobre a viver de brisa). Singularizar a atividade do poeta, portanto, não significa, para Aleixo, isolá-lo do contexto de uma sociedade de classes que se divide a partir do trabalho, mas sim inseri-lo para além das meras metáforas, tornando o poeta um trabalhador singular entre outros trabalhadores singulares como são o pedreiro ou o operário, por exemplo. A constante afirmação da independência do poema diante das mercadorias e do mundo do comércio - que resulta mais em pose do que em radicalidade de fato - não parece interessar aqui: o que importa é fazer do poema e do seu refrão (esse No, thanks provavelmente vindo desde e.e. cummings) um modo de atuar concreta e materialmente neste mundo. O ato de dar de graça, de não viver do que se faz, de cultivar a negatividade do limbo como um valor - tudo isso é rejeitado por Aleixo neste poema, talvez pelo fato de que esse conjunto de atitudes (ou de crenças) leve o poeta a ser menos um radical perigoso do que um tolo inofensivo.

A obra e a trajetória de Aleixo demonstram, em diversos pontos, que o poeta está constantemente atento ao que significa fazer poesia e ser poeta numa sociedade pautada pela acumulação do capital (e atento, ainda, às repercussões de tudo isso no fazer artístico de um afro-brasileiro). Seu apego à matéria é franco e, sobretudo, crítico: por um lado, não romantiza a retirada do circuito do capital ou mesmo a pobreza; por outro lado, trata-as com respeito e interesse, não se recusando, por exemplo, a divisar a beleza apesar da pobreza  (como nos versos recentes de que "É tão bonito/ o começo do domingo/ dos pobres/ muito pobres (...)") ou a explorar o sentido singular da beleza num contexto de pobreza - algo talvez presente em "A beleza mais bela", pois sabe que a experiência de ambas é parte constituinte de uma poesia e de um pensamento que se queiram radicais, cuja crítica vá além da pose (que cai bem sobretudo a uma poesia enclausurada nas boas intenções da classe média e da burguesia supostamente dissidente e traidora da sua própria classe) e mire na transformação mesma de algum fator, mesmo que mínimo, do mundo. 

Assim, este No, thanks, que surge só no fim da "Paupéria revisitada", parece ser ainda um refrão a ser cantado pelo poeta (sobretudo por aparecer em contraste com a tendência dos políticos em se vender, em aceitar qualquer negócio). Que isto seja um refrão (e que venha num poema cuja costura de rimas e ritmos se fundamentam sobretudo no som tão popular, entre jocoso e irônico, do "ão") é um exemplo daquilo dito acima: o que nele canta está pensando - e o que pensa é pensado de forma radical. Esse refrão retorna, posteriormente, deixando cummings e encontrando expressão no "Jongo", verdadeira profissão de fé anticapitalista:

O negócio é não
Se desculpar pelos transtornos

Não prometer
Um melhor atendimento

Nunca ser
Um bom negócio

Uma poesia radicalmente anticapitalista: eis uma definição justa para a obra de Aleixo. E se não tem apego à metáfora no que diz respeito ao trabalho do poeta (o poeta é um poeta e não um pedreiro, seu trabalho é o da poesia), Aleixo tampouco se interessa por essa figura de linguagem ao tratar de outros ofícios. Pensando na doença que mata os mineiros "Trabalhadores da/ St. John del Rey Mining/ Company, em Nova Lima," (que se gabam "de sua origem/ ('mineiros duas vezes')"), a escolha é pela metonínima, indicada já no título do poema: "A doença como metonímia". As minas, que estão tanto no nome do estado de origem do poeta (nome propício ao poema, bem como o da sua cidade, Belo Horizonte, bem como o do seu bairro, o Campo Alegre) quanto nos primeiros passos do capitalismo (as doenças dos mineiros ocupam passagens importantes de A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, de Engels) retornam nos versos de "Álbum de família", nos quais se dão a ver, retrospectivamente, os lugares do trabalho e do lazer no decorrer de gerações de homens negros de uma mesma família: 

Meu pai viu Casablanca três vezes (duas
no cinema e uma na TV). Meu avô 
trabalhou na boca da mina. Meu bisavô 
foi, no mínimo, escravo de confiança. 

Pois então: eis uma poesia radicalmente anticapitalista e que, além disso, reconhece, pensa e denuncia a constituição racial do sistema socioeconômico cultivado, no Brasil, através da escravidão e do racismo. A obra de Aleixo, portanto, mobiliza a história de modo a encontrar, na tradição afro-brasileira, os pontos de enfrentamento da realidade conformada pelo capital e sua faceta racial - daí o recontar da história familiar, a lição anticapitalista do jongo e, ainda, a identificação de Exu no menino de rua em "Cine-olho", poema no qual a figura religiosa se encontra com a criança lumpem sem que se guarde qualquer contato com a tradição católica de pensar o morador de rua, o mendigo, através da atitude "tão sóbria e banal quanto sagrada e vitalizante" de dar esmolas, como definia Benjamin. Esse menino-Exu, imagem pura "na/ noite/ de/ rua/ cheia" corresponde muito mais ao Exu visto por Clóvis Moura como "um símbolo libertário", aquele cuja devoção é sobretudo das "camadas proletarizadas, ou marginalizadas, que precisam 'fechar o corpo' ante a agressão permanente e a violência da sociedade abrangente", dos "segmentos marginalizados, expulsos do sistema de produção", que "procuram um combustível ideológico capaz de levá-los a sobreviver biológica e socialmente". E é também lidando com os sentidos criativos da palavra "trabalho" na tradição religiosa afro-brasileira que Aleixo escreve "Dendorí", no qual se afirma que se não é "PALAVRA-TRABALHO" ou "palavra-ebó", "palavra-despacho", "palavra-orí" ou "palavra-rio", "É SÓ PALAVRÓRIO" - algo que de parece ampliar a noção do trabalho do poeta para além, também, das configurações de um mercado capitalista.

No entanto, o corpo fechado ante essas agressões é o que não têm os mineiros que adoecem - e nem as operárias de outra obra, esta chamada "Leituras de operárias", cuja visão vai sendo gasta e corroída. Neste poema, a fonte do texto se apequena, dificultando a leitura de dois versos bem espaçados na página: "oolhosegastacomtantacoisamaisútilquepoemasque// oolhosegastacomtantacoisamaissutilquepoemas" - dois versos cuja sutil e mínima distinção entre eles guarda um sem número de entradas, que vão desde a distância entre as operárias e a leitura até a utilidade do poema no mundo dos afazeres e dos objetos e mercadorias. Embora não muito evidente na "Paupéria revisitada", estes dois poemas de trabalho deixam claro que talvez o grande drama do tempo de trabalho se desenrole sobre o corpo do trabalhador (com os pulmões adoecidos, se lê no poema, os mineiros "morrem cedo", têm portanto menos tempo em seu próprio corpo) ou daquele sem trabalho (com a inevitável vulnerabilidade do corpo do menino na rua, entre os carros).

A dimensão corporal é, sem dúvida alguma, um dos aspectos centrais da obra de Ricardo Aleixo. Não há como, neste espaço, sequer começar a compreendê-la devidamente (e nem sei se sou capaz de ir muito longe nessa discussão) - mas, para os interesses e caminhos deste texto em específico, é necessário passar pelo "Poemanto" e pela sua relação com o poema cujos versos estão escritos no manto, a saber, o "Para uma eventual conversa sobre poesia com o fiscal de rendas". O "Poemanto" é uma obra ("permanentemente em obras", pra usar uma expressão que aparece no seu texto) que também circula muito além das minhas limitações de leitura e cujas implicações para a performance e sua relação com a poesia certamente ainda estão por ser desvendadas e compreendidas. 

De todo modo, e para além das limitações expostas acima, o texto desenvolvido por Aleixo (não o que vai escrito no manto, mas o que aparece em seus livros) toca em diversos pontos que me interessaram ao longo desse post: o poemanto, por exemplo, "tem partes com Exu"; ele é, além disso, "Elogio do excesso,/ do desperdício" (aqui, Bataille chega junto); e, no que diz respeito ao tempo, ele é um "Elogio da lentidão", citando logo a seguir o ensaio de Milton Santos que leva essa expressão como título. De fato, este breve texto de Milton Santos traz algumas (não são poucas, mesmo) brilhantes reflexões em torno das questões da velocidade e da técnica - sobretudo porque o geógrafo baiano afirma categoricamente que "(...) vista historicamente, a técnica não é um absoluto", de modo que "(...) a velocidade hegemônica atual, do mesmo modo que aquelas que a precederam - e tudo o que vem com ela e que dela decorre - é apreciável, mas não imprescindível. Não é o certo que haja um imperativo técnico, o imperativo é político. A velocidade utilizada é um dado da política, e não da técnica".

A lentidão do "Poemanto" (e o fato da sua fatura se dar no palco tornado uma espécie de terreiro, entre outras coisas) revela ser esta, sim, uma peça crítica, "(...) um modo de contestação/ das velocidades". Numa obra que transita entre técnicas diversas (das mais antigas, como a fala e a escrita, até as técnicas digitais e cibernéticas), e num tempo em que a técnica deslumbra tantos poetas (que se aferram velozmente a cada uma e nova delas, acriticamente, meramente como sinal de pertencimento ao seu próprio tempo), acompanhamos, na poesia de Aleixo, a trajetória de um poeta informado por essa sutil concepção de Milton Santos, qual seja, a de que toda técnica guarda imperativos (e consequências) políticas (e é isso que de fato importa para uma obra que se pretenda crítica; aliás, o tecido, também ele uma técnica, deve ser levado em conta ao se "ler" o "Poemanto", sobretudo devido ao lugar de destaque desse material na expressão de posicionamentos e reflexões políticas na arte brasileira e latino-americana, bastando lembrar das obras de Oiticica - citado por Aleixo no seu texto -, Lygia Clark, Ana Maria Maiolino, Rosana Paulino etc.; o tecido, lembre-se, está muito próximo da bandeira). 

Milton Santos, logo após o seu alerta, ainda pergunta: "Daí a emergência possível de uma pergunta de ordem prática: será mesmo impossível limitar a velocidade dos mais velozes, isto é, dos mais fortes? Ou, em todo caso, poderíamos limitar essa força dos mais fortes?" (perguntas, aliás, que ganham mais interesse diante da nova aceleração dos ricos, que agora consegue inclusive alcançar velocidade suficiente para tirá-los da Terra no rumo do espaço em foguetes, visto que o texto de Milton Santos propõe justamente uma nova concepção da Terra como "casa coletiva"). Nestes cenários de aceleração e de elogio da lentidão, qual seria, então, o lugar e o valor do tempo da poesia? Voltando ao já distante começo do post, ao relato em torno da lenta pintura de um caranguejo perfeito feita por Chuang-Tsê, cercado por seus doze criados, vale reler um trecho fundamental do "Poemanto", trecho em que Aleixo revela a colaboração, na própria obra, de cantoras e atrizes responsáveis pela escrita dos versos no manto (e são versos sobre as propriedades do poeta, a saber, seus "próprios olhos", "próprios ovos", "próprios glóbulos", "próprios lóbulos" etc.) Aqui, as relações de trabalho estabelecidas em torno da confecção de uma obra saem do âmbito da criadagem e partem para o da criação ou colaboração criativa - visto que é a partir grafia dessas mulheres que o manto inventa seus conteúdos e suas formas de leitura em movimento (num trabalho que certamente exige que o olho da operária veja algo mais sutil do que um poema, ainda que, em sua sutileza, seja algo pesado demais para a ventania).