sobre as 'Canções do mar e de pescadores' de Dorival Caymmi

 


A poesia de Dorival Caymmi é uma das que mais me interessam em meio à modernidade e aos modernismos brasileiros. Muita gente já chamou atenção pro traço substantivo dos seus verbos e mesmos dos seus adjetivos, uma força que pouca gente alcança quando tenta e que ele apresenta como se nem tivesse tentado (gosto demais das leituras de José Miguel Wisnik e, ainda, Risério). Essa aposta substantiva é muito destacada, segundo Wisnik, numa canção como 'Saudades de Itapoã', na qual a breve enumeração dos substantivos simples - coqueiro, areia, morena - compõe a paisagem de Itapuã quase que ideogramicamente, mas é perceptível também, por exemplo, em versos como '- Pedro!/ - Chico!/ - Lino!/ - Zeca!', da passagem 'Temporal' em sua suíte 'Histórias de pescadores', nos quais a situação desesperadora de um temporal em alto mar aparece cifrada - de forma dramática mas contida, porque concisa e lapidar - na simples enunciação dos nomes dos homens que a enfrentam em seus barcos frágeis. 

Caymmi, portanto, não me parece ir muito longe da composição modernista feita por Oswald de Andrade, em seus poemas, da cidade São Paulo em sua passagem do rural para o urbano ou mesmo do Brasil em seus processos de colonização ou modernização - e já que ao falar de Caymmi, lembramos muito dos coqueiros, vejamos estes que foram vistos por Oswald em sua passagem por Minas Gerais, bem longe do mar: 

Coqueiros
Aos dois
Aos três
Aos grupos
Altos
Baixos

Nos poemas de Oswald (que, aliás, também viu coqueiros em Itapuã: 'Entre Itapoã e o farol tropical/ A bandeira nacional agita-se sobre o Brasil/ A cidade alteia cúpulas/ Torres coqueiros'), a enumeração - nunca muito extensa - também serve como método para a composição igualmente ideogramática de uma paisagem ao mesmo tempo afetiva e política (outro traço que, como se vai ver, é possível divisar nas canções do poeta baiano). No caso de Caymmi, uma poética na qual a adjetivação vale pouco e que aparece unida à temática praieira, me remete sempre a uma outra poesia moderna, esta portuguesa: as buscas de Sophia de Mello Breyner Andresen pelo nome das coisas

Caymmi era também um prosador e tanto, algo que se nota na sua célebre carta pra Jorge Amado, sempre tão reproduzida e citada, mas foram sobretudo seus versos que o fizeram ser um desses raros poetas que inventam um mundo dando a impressão de que só o descobriram, um mundo que já estava lá. Pra mim, sua formulação da Bahia só tem paralelo, na poesia brasileira, com a formulação do sertão por Gonzaga, Zé Dantas e Humberto Teixeira (embora essa, me parece, tenha sido mais expandida ao longo do tempo, por mais gente). O mundo praieiro de Caymmi, como disse, é um mundo que ele inventa por meio do trabalho, e não um mundo que ele descobre - aqui, talvez, seu mar se afaste do mar português de Sophia ou de qualquer outra tradição que relacione as coisas da água salgada (onde a morte é doce) com o heroísmo, com a grandiosidade que elude o cotidiano ou mesmo (como parece ser mais o caso de Sophia, de fato) com o cotidiano cuja base é a contemplação. 

Compare-se, por exemplo, as referências à gente que '(...) perdeu/ Seus maridos... seus filhos/ Nas ondas do mar' de 'O mar' de Caymmi ao choro descrito por Pessoa no 'Mar português': enquanto este volta às heroicas travessias coloniais que buscavam 'cruzar' o mar, Caymmi concentra as idas ao mar no período curto do dia de trabalho, um expediente, com uma saída certa e uma volta esperada, mas às vezes frustrada pelas fatalidades da atividade do pescador - que não quer cruzar o mar, mas estabelecer uma rotina segura de trabalho sobre ele: 'Pedro vivia da pesca/ Saía no barco seis horas da tarde/ Só vinha na hora/ do sol raiar...'

Nas praias onde Caymmi trabalha, portanto, os homens trabalham. Seus pescadores são, sobretudo, homens cujas relações com o mar são relações de trabalho - mas que podem ser, também, religiosas e festivas, pois Caymmi procura compor um mundo completo, cheio de substantivos e substância, no qual espiritualidade e lazer se mesclam ao trabalho, às suas necessidades e tragédias: os pedidos constantes de proteção a Yemanjá ou a Deus são um exemplo disso; outro são os versos de 'A jaganda voltou só', nos quais a tragédia do trabalho - a morte no mar - repercute na festa, que perde a graça:

Chico era o 'boi' do rancho,
Nas festas de 'Natá'
Não se ensaiava o rancho
Sem o Chico se contá.

Agora que não tem Chico
Que graça que pode tê?...
Se Chico foi na jangada...
E a jangada voltou só...

O próprio Caymmi, em sua introdução às 'Canções do mar e de pescadores', coligidas no Cancioneiro da Bahia, afirma que muitas dessas composições - como 'O vento' - foram tratadas por ele como cantos de trabalho, algo particularmente evidente em 'Pescaria', no qual sua poética substantiva e concisa simplesmente descreve os movimentos da atividade da pesca sobre uma linha grave e reiterativa tirada do seu violão (que só se expande justamente no momento de introdução da espiritualidade, quando o pescador faz um louvor a Deus, ou de lazer, quando se pensa na promessa de que 'Vai tê presente pra Chiquinha/ E tê presente pra Yayá'):

Cerca o peixe
Bate o remo
Puxa a corda
Colhe a rêde
Ô canoeiro puxa a rêde do mar

Segundo Caymmi, ele fazia essas canções porque era 'um homem do cais da Bahia' - o mesmo cais retratado por Jorge Amado na década de 1930, em Mar morto, livro que viria a inspirar canções de Caymmi anos depois. Jorge, em seu romance, faz um trabalho semelhante ao que Caymmi procura realizar, muito embora não prime, em sua prosa, pelo caráter substantivo e conciso da palavra - optando, na verdade, pelo caminho do texto caudaloso e revolto como o próprio mar (Caymmi, por sua vez, parece talhar o verso como se talha a canoa, ou como o próprio corpo do pescador é talhado na lida bruta do trabalho). De todo modo, tanto o romance quanto o cancioneiro de pescaria são retratos do mundo do trabalho e do trabalhador dos mares.

Como aponta Risério, apesar de 'Peguei um Ita no norte' ou 'Saudade da Bahia', não foi Caymmi, mas Gonzaga, o poeta da migração nordestina para os postos de trabalho nas cidades do Sul. Isso, no entanto, não significa que o tema do trabalho seja ignorado pelo poeta baiano: se não retratou o labor industrial e proletário em São Paulo ou no Rio de Janeiro, Caymmi se voltou com atenção social e rigor poético para o mundo de um trabalho ainda artesanal, mas já precário, perigoso e dependente, cujos frutos são mais o desgaste e a morte do que a riqueza e a satisfação. 

Este cotidiano de trabalho, atribulações e luta de pescadores e trabalhadores do mar foi explicitado na história brasileira por Jacaré, Tatá, Manuel Preto e Jerônimo, jangadeiros cearenses que, entre 1941 e 1942, a bordo da Jangada São Pedro, foram da Praia de Iracema, em Fortaleza, até o Rio de Janeiro em reivindicação por reconhecimento e direitos trabalhistas. Durante a  viagem, Jacaré vê se expandir a consciência da desigualdade e afirma a um jornal da Bahia: 'Quando saí de Fortaleza pensava que só fossem pobres os jangadeiros do Ceará, mas comprovei que pobres são, também, os pescadores dos outros estados, os quais não têm casa, nem remédios, nem escolas. Eles me pediram e eu levo mensagens suas para o presidente Getúlio Vargas solicitando auxílio para a classe. Hoje já não somos mensageiros apenas dos pescadores do Ceará. Somos mensagens dos pescadores de todo o norte'. Esta é, sem dúvida, a mesma matéria da qual Jorge Amado faz a prosa de Mar morto - e Caymmi a poesia das suas canções de pescadores.

Obviamente, existem algumas dezenas ou centenas de conceitos de poesia, tão variados quanto os tempos e as cabeças são variáveis. No meu conceito, bem como na própria poesia que procuro fazer, a canção brasileira em língua portuguesa é um dado central, que funda e norteia e que é, se não mais, tão importante quanto a poesia que se diz 'letrada' - um adjetivo engraçado, aliás, para se pensar e utilizar no meio desse texto que investiga uma poesia substantiva, já que tradicionalmente chamamos de 'letra' justamente aquilo que se canta na canção. 

Numa entrevista recente, por exemplo, o poeta Érico Nogueira, atual editor da revista de poesia da Biblioteca Nacional, se refere ao que seria uma 'poesia culta, letrada ou letradíssima', que ele afasta e distingue das 'manifestações correlatadas como a poesia popular e a letra de canção', ilustrando uma ideia que, mesmo que não seja hegemônica hoje em dia, ocupa posições oficiais e importantes no campo da poesia e da crítica brasileiras (trata-se de uma ideia que foi muito aventada por um poeta como Bruno Tolentino em suas tretas com a poesia concreta, que acabavam resvalando sobretudo na figura de Caetano Veloso e, por tabela, em toda a tradição da canção - que ele dizia admirar, mesmo que não aceitasse, em hipótese alguma, que seu filho tivesse contato, na escola, com as obras de Bilac e Caetano, definido como 'um violeiro qualquer', apresentadas como semelhantes, exemplares da cultura poética brasileira). As distinções, naturalmente, podem e devem ser feitas, afinal, todos os campos de pensamento devem realizar e promover a sua própria crítica - e eu, cá no meu campo, até tendo a aceitar a distinção entre a poesia de Caymmi e uma poesia letradíssima, mas em detrimento desta última. 

No caso de posturas como a de Tolentino, o que preocupa é o fato dessa crítica apostar na pura e simples exclusão (mesmo que apenas do conteúdo didático para crianças e adolescentes) de uma matéria incontornável das artes verbais brasileiras, tal como me parece ser a tradição da canção popular. E essa exclusão possui repercussões sociais e políticas preocupantes (pois é reacionária e elitista) - afinal, uma oposição entre cultura letrada e cultura popular (ou oral, quem sabe) é apenas outra faceta de uma luta maior no contexto brasileiro: uma luta de classes - cujo fundo é, obviamente, racial. Basta se atentar para a história do letramento neste país (do qual a poesia letrada e os poetas fazem parte, naturalmente, e que é uma história de exclusão e violência) para compreender a situação que se cristaliza neste embate. E é importante ressaltar que não se trata de buscar, para produções como as de Caymmi ou de outro violeiro qualquer (ou, mais recentemente, outro mc qualquer), um selo de qualidade que a palavra 'poesia' poderia lhe dar, possibilitando que convivessem com a obra de Bilac, por exemplo - trata-se, na verdade, de marcar posição pela validade e pelo reconhecimento crítico, intelectual, sentimental e político da força de uma tradição artística e verbal das classes populares brasileiras.

O cancioneiro do mar e de pescadores de Caymmi, como eu o leio e o ouço - ou seja, como uma obra fundamental da modernidade da arte poética em língua portuguesa no Brasil (com sua concisão, com sua dicção cristalina e desadjetivada e com seu conteúdo política e socialmente informado que evita que a sensibilidade se mostre por meio de efusões afetadas, optando pelo rigor mesmo quando o tema ou a cena parecem pedir um exagero retórico ou sentimental) - me levam a crer que não se pode compreender a poesia brasileira, em toda a sua complexidade estética e social, em toda a sua relação com a vida dos trabalhadores brasileiros (a relação que importa para aqueles comprometidos com a emancipação desses trabalhadores e para os próprios trabalhadores - sejam eles pescadores ou operários), sem ouvir a poesia que se canta - como aquela que abre a 'História de pescadores', esse canto de trabalho e esperança para a comunidade:

Minha jangada vai sair pro mar
Vou trabalhar, meu bem querer
Se Deus quiser quando eu voltar do mar
Um peixe bom eu vou trazer
Meus companheiros também vão voltar
E a Deus do céu vamos agradecer