sobre Belchior e Don L


'Passeio', que está no álbum de estreia de Belchior, talvez seja mesmo uma canção menor, e mesmo naquele álbum de estreia - que, pouco ouvido, guarda grandes composições como 'Cemitério', 'Na hora do almoço', 'Todo sujo de batom' e 'A palo seco'. Mesmo assim, menor, merece ser ouvida, porque dela se pode partir para uma série de especulações sobre o sono e o sonho - duas coisas que vão nos escapando aos poucos, mas das quais já perdemos muito. 'Passeio' é uma balada singela que descreve uma espécie de folga: em plena quarta-feira, um casal apaixonado passeia pela rua da Consolação e por outros pontos de São Paulo (nomeada e com uma paisagem composta sobretudo por carros, cimento e eletricidade), por fim dormindo no parque (como se fosse um domingo no parque):

Vamos andar
Pelas ruas de São Paulo
Por entre os carros de São Paulo
Meu amor, vamos andar e passear
Vamos sair pela rua da Consolação
Dormir no parque, em plena quarta-feira
E sonhar com o domingo em nosso coração

Eu disse folga, mas não há muito como justificar essa escolha. Em momento algum se fala de trabalho. 'Passeio' é uma canção preguiçosa (mesmo sua rimas e sua sintaxe, com inversões frágeis mirando e facilitando a rima, é desleixada quando se pensa na obra de Belchior), uma canção de amor e sonolência - sonolência espantada apenas pela eletricidade que 'Me dá vontade de gritar/ Que apaixonado eu sou'. A cidade me parece ser descrita do ponto de vista de alguém que a conhece há pouco, que não está familiarizado com sua paisagem ou seus modos - trata-se, afinal, da canção de um migrante, um estranho que, agora, experimenta a cidade de outra forma porque ama alguém da ou na cidade.

Na sua famosa e incompleta introdução ao Comunismo ácido, Fisher cita rapidamente algumas canções de grupos britânicos que, nos anos sessenta, tratam do sono ('I'm only sleeping', dos Beatles) e de uma certa preguiça domingueira ou vespertina ('Sunny afternoon', dos Kinks, e 'Lazy sunday', do Small Faces), concluindo que elas são representativas de um determinado período de experimentação possível para jovens e famílias da classe trabalhadora inglesa, uma experimentação guiada por 'The refusal of work', que era também 'a refusal to internalise the systems of valuation which claimed that one’s existence is validated by paid employment'. O teor psicodélico dessa faceta da contracultura é explorado por Fisher em suas complexas relações com o capitalismo avançado daquele primeiro mundo e com o terror neoliberal que, como ele mesmo diz, se inicia com o golpe militar e a ditadura de Pinochet num ponto extremo do terceiro mundo. Sua leitura da contracultura, de todo modo, parece procurar nela o que havia de libertador, as proposições de experiências de comum e de desvelamento de utopias possíveis (via alterações e expansões da consciência) num horizonte fechado pela ascensão do realismo capitalista - daí, afinal, um comunismo ácido (essa é uma discussão que nitidamente se alterou após a morte prematura de Fisher, sobretudo no sentido das cada vez mais claras limitações do rescaldo da contracultura, que se revela a cada dia mais afeita ao reacionarismo e à afirmação do individualismo descerebrado do neoliberalismo e ao misticismo/obscurantismo monetarizado).

Vou a esse texto de Fisher porque, de fato, a experiência brasileira só poderia ser radicalmente distinta. De todo modo, o sono de 'Passeio' tem algo de uma tentativa - precária, terceiro-mundista, nordestina, latino-americana (pois o espaço e a vida continentais, do Sul da América, vão ganhando uma presença cada vez mais acentuada no trabalho de Belchior) - de experimentar isso que seria um comunismo ácido. Não parecerá gratuito, assim, que Belchior, contagiado sabe-se lá como pela eletricidade, escreva e cante versos como os que se seguem, nos quais a lisergia contracultural talvez apareça nessa imagem gratuita de um disco voador:

Nesse cimento, meu pensamento e meu sentimento
Só têm o momento de fugir no disco voador
Meu amor, meu amor, meu amor

Mas então: há que se pensar a distinção radical dessa canção no âmbito da poética da migração nordestina - uma poética do proletariado e do trabalho, ao qual dificilmente se desenvolve uma crítica que vá além do fato deste abrigar e permitir a exploração, e na qual o elogio de traços como a preguiça é raríssimo, quase um tabu para uma população taxada injuriosamente de preguiçosa, apesar de constituir uma massa trabalhadora (um luxo expressivo, portanto, mais adequado aos jovens da classe trabalhadora britânica). Como já escrevi, o sono - nesta tradição - aparece quase sempre sob o signo da falta: 'Acordo sem dormir', canta Ederaldo Gentil; 'É um tal de dormir tarde e acordar cedo que eu vou te contar', escreve Raimundo Sodré. 

Essa distinção de 'Passeio' é notável até mesmo no âmbito da própria obra de Belchior. Basta ver como o sono - e, mais do que isso, o sono ao relento - aparece em 'Monólogo sobre as grandezas do Brasil':

Todo mundo sabe, todo mundo vê
Eu tenho sido amigo da ralé da minha rua
Que bebe pra esquecer que a gente
É fraco, é pobre, é vil
Que dorme sob as luzes da avenida
É humilhada e ofendida pelas grandezas do Brasil

Aliás, já no Alucinação, disco lançado dois anos depois, na canção 'Fotografia 3x4', naquele momento em que o compositor cearense se dirige a Caetano, embora não se fale diretamente de sono, fica claro que há uma mudança radical na representação da noite que aqui é símile justamente de sono: 'Veloso, o sol não é tão bonito pra quem vem do norte e vai viver na rua// A noite fria me ensinou a amar mais o meu dia (...)'. Aqui, Belchior está muito mais próximo de Gordurinha cantado por Jackson do Pandeiro (em 'Meu enxoval', na qual o migrante desempregado vive e dorme na rua, coberto por jornais) do que dos grupos de rock britânicos - na letra de 'Alucinação', aliás, ele refere 'Os humilhados do parque/ Com os seus jornais', tanto se ligando a 'Meu enxoval' quanto alterando a paisagem e o sentido do parque, retirando dele o amor e o sono do delírio e do descanso e colocando, no lugar, a humilhação. O salto qualitativo em termos poéticos e conceituais de 'Passeio' para 'Fotografia 3x4' ou 'Alucinação' é um tanto assombroso, parecendo canções de compositores distintos - ou do mesmo compositor em momentos separados por muito mais do que dois anos.

Embora pequena, 'Passeio' se destaca justamente pela singularidade. Não por acaso, ela reapareceu recentemente, referida e reinventada por Don L em seu disco Roteiro Pra Aïnouz, Vol. 3. A faixa tem o sugestivo título de 'Cocaína', que talvez se possa ler em perspectiva com o provável ácido que leva Belchior a ver discos voadores e possibilidades de relação com a contracultura inglesa (no poema de Don L, não se foge com discos voadores, mas dança-se com helicópteros): a cocaína marca a passagem para uma época e um consumo de drogas que podem ser tomados como a antítese da viagem lisérgica que marca a década de 1960 (sendo esta, afinal, a droga de eleição dos yuppies). O rap de Don L é, de fato, muito mais incisivo e violento: 'As ruas já não cabem mais carros' é o verso que abre a descrição da superação de uma bad trip. Ao modo de 'Passeio', a paixão - como uma droga - altera a percepção da cidade para o migrante (o mesmo que, numa outra faixa do disco, se refere a uma 'depre-São Paulo' da qual se renasce):

Mas ela apareceu e tipo
Foi como seu eu botasse meus óculos
De dez graus e ela sem um filtro me
Deixou legal até esse ar tóxico
Mudou o mundo, como Karl Marx quis
Dançou na chuva com os helicópteros
Eu devo ter usado narcóticos

A inocência lisérgica de 'Passeio' dá lugar ao sexo (ao invés do sono) e ao risco de uma droga diferente (e o surgimento de Marx talvez indique que houve uma saída do comunismo ácido para um comunismo com outro aditivo químico, muito embora o espírito contracultural, lisérgico e rockeiro persista na guitarra de outro músico cearense, Fernando Catatau, que participa da faixa) - mas ainda assim a canção de Belchior aparece:

Então, vamos chapar pelas ruas de São Paulo, como Belchior
Meu amor
Eletrificado, como Belchior
Meu amor
E gritar alucinado, como Belchior
Meu amor
Meu amor
Vamos dar um calote em um hotel de luxo, como Belchior
Mandar se foder o mundo, como Belchior
E ultrapassar correndo as Ferraris do engarrafamento
Que a Bovespa não me deu a cotação do tempo

Don L também não faz qualquer elogio da preguiça ou alguma crítica juvenil do trabalho (a poética do rap é igualmente avessa a isso, por sinal, e ele prefere louvar sua trajetória laboriosa em faixas como 'Fazia sentido' e em outras de títulos sugestivos como 'Ferramentas') mas, comunista que é, mira e ataca alguns símbolos do capital que domina o trabalho, como as Ferraris, o luxo e a Bovespa, que não consegue domar o tempo - sobretudo o tempo livre durante o qual o trabalhador migrante experimenta a cidade de outras formas (sobre as Ferraris e os carros, é importante lembrar dos versos de outra faixa do disco, no qual Don L canta, cheio de ironia contra uma típica acusação infantil feita aos comunistas: 'Eu devo tá errado/ Eu sou comunista e curto carros'). O álbum de Don L renova a poética da migração nordestina a partir de diálogos com os poetas dessa tradição (como Belchior, obviamente, mas não só), mas também por meio de um trato novo de temas recorrentes (a imagem da seca, por exemplo, é subvertida em formulações como esta, de 'Eu não te amo': 'E eu deixei o nordeste/ Há dois anos, com uma sede de secar a Sabesp'), agora abordados com a ousadia de um artista formado pela ousadia da cultura hip hop (o pernambucano Diomedes Chinaski, que divide 'Eu não te amo' com Don L, também procura se situar nessa tradição).

Um tipo semelhante de ataque a certos símbolos do capital seria feito por Belchior numa importante canção sua, 'Paralelas', que também retoma as questões em torno do trabalho e do amor, numa perspectiva crítica mas sobretudo melancólica, insistindo em duas coisas centrais lá no 'Passeio': os carros e o grito. Já sem o amor e o passeio a pé, a canção começa com:

Dentro do carro
Sobre o trevo
A cem por hora, ó meu amor
Só tens agora os carinhos do motor

- para logo em seguida confirmar o desaparecimento do amor desta paisagem urbana, que passa a ser vista apenas das janelas do carro, do escritório e do apartamento:

E no escritório em que eu trabalho
E fico rico, quanto mais eu multiplico
Diminui o meu amor

Se em 'Passeio', e também em 'Cocaína', a melodia e a voz se eletrificam nos gritos reiterados de 'Meu amor, meu amor, meu amor', 'Paralelas' se encerra, de forma anti-apoteótica, com o poeta cantando 'No apartamento, oitavo andar/ Abro a vidraça e grito, grito quando o carro passa/ Teu infinito sou eu, sou eu, sou eu, sou eu', com o amor dissolvido num grito individual de afirmação - um grito sem dúvida desesperado de uma figura presa num cotidiano tributável, contabilizável e pequeno-burguês (se poderia falar de classe média) no qual a alucinação libertária e comunitária, amorosa, já não é possível, seja através do ácido ou mesmo das 'coisas reais', com as quais Belchior dizia preferir alucinar.