A segunda faixa de Mansa fúria, de Josyara, se insere na tradição de uma poética da migração nordestina com a força de uma novidade. A canção se chama 'Você que perguntou' e faz isso a despeito de durar menos do que dois minutos - sinal, talvez, de que faz isso com alguma fúria. Ela não é, de fato, a grande canção do disco. Longe disso: é praticamente uma vinheta, e sua inserção no videoclipe de 'Nanã', quase como um preâmbulo a esta, mais importante, reforça a impressão. Que apareçam juntas faz muito sentido, já que tanto 'Você que perguntou' quanto 'Nanã' se voltam para uma figura importante dentro dessa tradição: a mãe - mas fazem isso de modo incomum, como se verá.
Seria exaustivo fazer uma lista de canções de migração nordestina nas quais as mães aparecem e compõem o quadro do deslocamento, quadro que em geral se faz no rumo de uma 'cidade', em geral é motivado pelo trabalho, em geral surge descrito como uma ruptura, em geral se escreve como cartas endereçadas à mãe que fica e em geral é composto por homens (refletindo tanto uma configuração histórica do movimento migratório, cuja massa era feita sobretudo de homens, algo lido como 'natural' numa sociedade formada nos moldes patriarcais em que a mulher realizava o trabalho doméstico - e que inclusive seguirá realizando-o em caso de deslocamento para o Sudeste, só que na casa dos outros - quanto o desequilíbrio disso refletido no fazer artístico e poético). De todo modo, lembre-se de 'Menina Jesus', na qual se pede a bença à mãe; ou de 'Saudades da Bahia', na qual se lamenta não ter escutado o que a mãe dizia; ou de cartas como 'Já vou, mãe', de Dominguinhos e Anastácia, e 'Carta a Maceió', de Gordurinha.
Mas é na poesia de Torquato Neto, autor da 'Mamãe coragem' que Gal canta no Tropicália, que esse topos ganha sua forma mais bem acabada - e é com o poeta piauiense que a canção de Josyara conversa mais de perto. Desde a cidade que o sujeito migrante 'planta' e que não tem mais fim em 'Mamãe coragem', o rapaz pede que à mãe que não chore (e que ao invés disso lave panos ou leia folhetos), delineando um tipo de discurso consolador muito comum neste topos - e é a isso que Josyara se opõe, afirmando repetidamente (repetição ainda mais significativa por aparecer numa canção tão curta) que ela veio para a cidade (agora descrita como louca) não a despeito do choro inútil da sua mãe, mas ao contrário: veio chorar, ela mesma, o choro dessa mãe.
Ainda além disso, parece haver uma intenção de não apenas chorar o choro, compartilhando-o, como também de cantá-lo, trazendo-o a público, retirando-o do espaço exclusivamente doméstico, de silêncio ('e eu vim, eu vim cantar/ o choro da minha mãe, ô menina/ eu vim chorar'), com os versos de Josyara aqui remetendo a outra canção importante, que é 'Eu vim da Bahia', de Gil - que, com seu tom calcado na bossa-nova (e é curioso que Josyara, original da mesma Juazeiro de João Gilberto, encaminhe 'Você que perguntou' numa outra direção também contemplada por Gil, a do violão mais nervoso, percussivo, e próximo de Roberto Mendes mas também de certa tradição situada mais ao sertão), descreve a saída e a ida de Gil para cantar as coisas bonitas da Bahia e, a certa altura, se refere à proteção de uma mãe, neste caso Iemanjá.
Se 'Você que perguntou' é uma introdução, 'Nanã' aprofunda a questão materna com outra figura de um orixá feminino. Nela, ao contrário daquela canção de Caymmi (na qual a mãe certamente dizia para que o filho não fosse embora da Bahia), escuta-se o que a mãe dizia ou diz - e o que ela diz é uma série de conselhos para a prática da desobediência e para a compreensão daquilo que cerca a filha. A mãe - que não é a mesma de 'Mamãe coragem' (ou que até poderia ser, mas vista de outro modo, pelos olhos de uma filha), ironicamente, recomenda justamente a coragem para a filha que vai, ou já foi, pra cidade louca:
Procuro o meu caminho
Bem na palma de minha mão
Persigo meu destino
Ouço a voz, ouço a voz, ouço a voz de minha mãe
Dizendo: Filha, olha ao seu redor, entenda
Tudo é como deve ser
Tenha coragem, cresça, procure um abrigo
Quando a tristeza canta, desobedeça a dor