sobre o livro 'Caosnavial', de Philippe Wollney

 


A poesia de Philippe Wollney poderia ser encarada do mesmo modo como ela é feita: de modos diversos. Há muito o que se dizer do seu lirismo e do seu erotismo, por exemplo. Há bastante o que se escutar em meio a sua proximidade com a canção, também. E há ainda mais o que se pensar em torno da sua fatura editorial - pois Wollney é poeta e também fazedor dos seus livros, um autor que leva a sério (e até novas consequências) uma proposta de compreensão da poesia como um trabalho que é, além de mental, manual.
 
A retirada do poema do âmbito exclusivo de uma etérea elaboração intelectual, jogando-o no campo mais firme da materialidade é, a meu ver, um ponto importante para uma poesia que se pretenda consciente do seu lugar em meio aos afazeres humanos e à divisão dos trabalhos. Uma compreensão do poema que não leve em conta a circulação do poema será, obviamente, parcial e insatisfatória - e falar da circulação é falar, também, do suporte. Fazer o poema é fazer o objeto - pensar com a cabeça e pensar com as mãos.

Esse processo de Wollney aponta para coisas importantes: por um lado, evidencia que o trabalho de fabricação pode ser também um trabalho criativo e libertador, pois seus objetos editoriais são sempre intrigantes, formulados como suportes que participam ativamente da experiência de leitura e decodificação; por outro, põe em questão a independência enquanto mero estilo ou etiqueta dentro do mercado mainstream, afastando-se também da tentação de tornar a editora uma simples gráfica rápida, pois exerce a crítica e o vagar. Posturas como a de Wollney, portanto, lançam o poema no meio do mundo, evitando torná-lo uma suposta reserva de preservação diante da ideia e da prática dos artefatos que circulam como mercadoria.

Mas não é neste ponto que quero caminhar, neste texto - que é ou ainda deverá se tornar um texto sobre Caosnavial ou o sabor sujo, um dos seus livros, publicado pela Porta Aberta (é este o nome da sua editora) em 2016, na cidade de Goiana, na Zona da Mata pernambucana. O livro, como se pode inferir a partir do título, circula ao redor e no meio da imagem das plantações de cana-de-açúcar e do próprio açúcar. Como se sabe, tanto o canavial quanto o açúcar são marcas de uma zona específica, muitas vezes usada para as fabulações mais iludidas ou mal-intencionadas a respeito de origens, de projetos mais ou menos pacíficos e doces de nação. A doçura e a cultura dos engenhos aqui já são apresentadas, na capa e contracapa, pela associação com outras coisa que não a paz e o doce: o caos e a sujeira.

O livro está repleto de epígrafes e referências (a Cuti, Belchior, Gramsci, Solano Trindade, Roberto Piva, João Cabral etc), mas - curiosamente - um autor que pode dialogar de forma direta com seu projeto não aparece nomeado. Estou falando de Ferreira Gullar, cujos versos de 'O açúcar' (do livro Dentro da noite veloz) dizem muito do que Wollney procura em seus poemas e trabalhos. No texto de Gullar, a brancura e a pureza do açúcar servem para que o poeta reflita em torno justamente da divisão do trabalho e das riquezas e misérias geradas por ele. Enquanto o poeta, em seu conforto pequeno-burguês, adoça o café em Ipanema, ele também diz:
 
(...)
Este açúcar veio
de uma usina de açúcar em Pernambuco
ou no Estado do Rio
e tampouco o fez o dono da usina.

Este açúcar era cana
e veio dos canaviais extensos
que não nascem por acaso
no regaço do vale.

Em lugares distantes, onde não há hospital
nem escola,
homens que não sabem ler e morrem
aos 27 anos
plantaram e colheram a cana
que viraria açúcar.

Em usinas escuras,
homens de vida amarga
e dura
produziram este açúcar
branco e puro
com que adoço meu café esta manhã em Ipanema.

É como se a diluição do açúcar fosse precedida pela diluição dos homens que o fizeram (e quem faz os livros, aliás?). É contra a fantasmagoria do açúcar branco e pronto para o uso que o poeta se coloca, pois ele 'não foi produzido por mim/ nem surgiu dentro do açucareiro por milagre'. A busca é pela revelação da materialidade da coisa que, embora material, nos parece milagrosa, fantasmal ou etérea (como o próprio livro que traz o poema, aliás). Esta poesia atenta ao material se transforma também numa poesia atenta ao preço: se Gullar ridicularizava o poema afirmando que 'O preço do feijão/ não cabe no poema. O preço/ do arroz/ não cabe no poema./ Não cabem no poema o gás/ a luz o telefone/ a sonegação/ do leite/ da carne/ do açúcar/ do pão', Wollney decompõe assim a relação:
 
(...)
ñ

pra
pen
sar
em
ar
te
sem
passar
pe
lo
pre
ço
do
pão
(...)
 
O pão e o café de Wollney tocam mais diretamente na herança colonial, com o café descendo amargo mesmo: 'nestes canaviais/ seis milhões de negros/ foram sorvidos/ é impossível/ esse café/ não descer/ amargo'. No entanto, mesmo situando-se neste território de prática e pensamento colonial mais tradicional, as feições de Caosnavial são sobretudo contemporâneas, interessadas no desvelamento e na visão direta do cotidiano corrente - muito embora o poeta, em 'caosnavial iii: nove dígitos', tenha arrancado os olhos diante 'da morte lenta de mendigos', da 'família que se joga em alta maré', do 'estupro na casa de repouso feminino', das 'contas bancárias de nove dígitos', dos 'nômades catadores de lixo eletrônico' e do 'novo empréstimo para o banco falido'.
 
Neste Caosnavial, o poeta - eventualmente sem olhos para ver mais nada - ocupa, incomodado, aquele espaço precário do ambiente urbano que é um prolongamento mal asfaltado do campo ('(...) o rural urbanizado & deteriorado & homogeneizado em plantations & agrotóxicos'), devastado pela cultura extrativista e pela disseminação da ideia de que a liberdade se alcança pelo consumo, ideia que se firma num equilíbrio delicado com a satisfação de necessidades básicas até então inalcançáveis, equação ainda não resolvida pelas esquerdas brasileiras ('contratos: pedidos de liberação de crédito/ tratados: resoluções: acordos econômicos/ : o sonho da casa própria/ : o carro do ano/ : a comida sobrea mesa: a sede de viver'). Como resultado, de todo modo, há uma mistura caótica de carroças, tratores, submetralhadoras, bolsas Louis Vuitton, jegues, chacinas, evangelizadores, estupros, linchamentos, fast-foods, computadores e cachaça. Um perfeito pesadelo neoliberal cujas locações poderiam se afastar da zona da mata no rumo de outros interiores nordestinos e brasileiros.

O caos e a violência destas pequenas e médias cidades tocadas por uma modernização conservadora e extrativista, e que agora forja uma cultura supostamente autêntica, popular e vibrante, mas que na verdade é uma reprodução artística da monocultura agrícola (o agro que é pop, a festa de uma burguesia que sabe se disfarçar e festejar com os trabalhadores e todas as suas vítimas:
 
(...)
car
na
val
mais
do
mesmo
///
fan
ta
si
as
de
o
pe

ri
o
&
pa
tr
ão
(...)
 
) - eu dizia: tudo isso é vazado, em Caosnavial, numa oscilação entre o verso e a prosa, entre a exploração minimalista e a saturação dos espaços em branco e das manchas na página, entre a atenção ao mínimo detalhe de certa rua ou esquina e a elevação destes lugares a uma espécie de galáxia (por isso, aliás, certos procedimentos do livro remetem, ao menos na minha leitura, ao barroquismo experimental das Galáxias de Haroldo de Campos, outro autor que nem é evocado nominalmente no livro - livro que, ademais, entrega alguma reticência irônica dirigida aos concretistas).
 
Enfim, e para falar com outro autor que não está referido no livro, mas que pode conversar com ele, Wollney, o poeta com os olhos arrancados (muito embora, já pro final do livro, leia-se: 'afasto a fuligem dos olhos com o sopro frio que anuncia as chuvas de verão', uma beleza de imagem no meio da sujeira), mira, aqui, o cu do mundo. 'O cu do mundo' de Caetano, como se sabe, foi motivada pela notícia de um linchamento numa cidade do interior (no seu chão, não no seu céu, como em 'Não identificado'), a partir da qual se canta que 'A mais triste nação/ Na época mais podre/ Compõe-se de possíveis/ Grupos de linchadores', logo após a afirmação do seu (nosso) lugar: '(O cu do mundo, este nosso sítio)'. Wollney também trabalha essa imagem, levando-a ao paradoxo ('prisão de ventre é a negação do cotidiano').
 
Num comentário a respeito de outra canção, 'Acrilírico' (na qual se refere a sua cidade como Santo Amargo da Putrificação), Caetano diz o seguinte: 'Penso que há muita verdade no termo 'putrificação', que, para além da referência a Santo Amaro, é radicalmente contra uma imagem idílica das cidades do interior do Brasil, sobretudo das do Nordeste'. Santo Amaro, como se sabe, está numa região igualmente tocada pela cultura colonial e extrativista da cana, do açúcar e do engenho - e a atenção que Caetano dispensa ao amargor, ao amaro, ao acre (bem como sua ideia por trás do ataque à sua cidade, quase sempre retratada muito positiva e afetivamente por ele) indica um procedimento muito semelhante ao de Wollney em seu amargo Caosnavial.
 
Não se confunda tudo isso, no entanto, com mera constatação do fracasso e clamor pelo abandono desse lugar (estes subúrbios são para o poeta, assim como o eram pra Walter Benjamin, para além de cemitérios - de campos santos -, campos de batalha). Gramsci aparece em epígrafe, a certa altura (e num poema em que Xapanã retorna avisando sobre o valor de todas as poéticas e o fim de certos enganos): 'pessimismo do intelecto e otimismo da vontade', afirmando um projeto socialista que certamente anima este livro, cujo intelecto detecta a miséria e a alienação, mas cuja vontade é a mesma daquele trabalhador descrito entre um assalto e a 'comida sobre a mesa': ': a sede de viver/ : & um desejo: agora'. 

É assim que, mesmo através do fétido cu do mundo, o poeta da zona da mata (com sua 'fé fria nos subúrbios', consciente, ao modo de Benjamin, de que 'Quanto mais nos afastamos do centro, tanto mais politizada se torna a atmosfera. (...) Os arredores são o estado de exceção da cidade, o terreno no qual brame ininterruptamente a grande batalha decisiva entre a cidade e o campo') dá um torção inesperada na imagem de merda que parecemos ser agora - e fala:

& o profeta brilhando com urânio
descerá entre as nuvens de enxofre
& em seu novo discurso
sobre o monte de lixo eletrônico afirmará:
: somos um nó nas tripas do mundo

Essa versão decaída de 'Um índio' de Caetano, que não desce numa estrela colorida (mas numa nuvem de enxofre) e nem pousa no coração do hemisfério sul (mas em seu intestino), aparece afirmando uma possibilidade - afinal, ser o nó nas tripas do mundo é uma maneira de conter esse mundo, uma forma de impedir que ele siga cagando sobre nós, interrompendo o seu funcionamento de merda (toda essa escatologia, no Brasil de 2021, se tornou coisa corrente e familiar diante dos problemas intestinais do presidente fascista, que passaram a ser assuntos nacionais da maior importância). Neste sentido, é menos 'o' do que 'um' mundo que se quer destruir, pois que '(...) sobre a terra o teto o trabalho o homem & o pão : & os poeta escorregam sobre o óleo' mas também 'regam flores sobre o gasoduto : plantam bredos nas margens de toda a BR 101 & buscam uma ética para atravessar o inferno'. Atravessemos, pois, tanto o inferno quanto o canavial - e se não tiver nada do outro lado, teremos que inventar alguma coisa.