Em 1973, Belchior lançou um compacto com duas canções – uma delas, ‘A palo seco’, se tornaria um clássico em sua versão refeita para o disco Alucinação; a outra, ‘Sorry baby’, acabaria praticamente esquecida até ser retomada, nas plataformas de streaming, como parte do disco de estreia do compositor cearense. Essa canção, no entanto, guarda uma série de vias para algumas apreciações e leituras da obra de Belchior. Uma delas diz respeito à sua conversa franca e corajosa com a obra de Caetano Veloso, algo perceptível já no título – que, esclarecido pela letra da música, se revela uma resposta à clássica ‘Baby’ gravada e popularizada por Gal Costa. Mais especificamente, Belchior responde à imperativa afirmação de que ‘Você precisa aprender inglês’ – cantando
Sorry, sorry, sorry, sorry baby
Sorry, sorry, sorry, sorry baby
Desculpe o inglês que eu aprendi
Nos almanaques de música do mês
A ironia se segue com uma série de versos em inglês, a maioria deles fazendo referências às canções dos Beatles – até o momento em que o rock se torna um baião e Belchior se volta a um outro artista central em toda a sua carreira: Luiz Gonzaga. No caso de 'Sorry, Baby', Gonzaga aparece mudando o ritmo, mas também a língua da canção. Depois da grande sequência de versos em inglês, num ritmo de rock, o baião irrompe e Belchior canta, em português, os versos de 'ABC do sertão', canção de Luiz Gonzaga e Zé Dantas.
A princípio, se poderia pensar que há, na letra de Belchior, uma certa postura conservadora, de resistência frente ao inglês, mas o fato da canção mesma ser um rock, e ter versos em inglês, me parece impedir essa interpretação (e a língua estrangeira, afinal, foi aprendida – mesmo que mal). Na verdade, apesar da ironia contra Caetano Veloso, a canção não difere muito das propostas tropicalistas de negação da pureza cultural nacional e de adoção, mesmo que crítica ou irônica, de paradigmas estrangeiros e da cultura de massa – vejam como, na segunda parte da composição, Belchior sugere as misturas de pratos típicos do Nordeste com produtos industriais:
Jerimum com leite em pó
Munguzá com dietil
I love you, I love you
I love you, I love you
Rock, moda de viola, coca-cola com angu
I love you, I love you, I love you
I love you, I love you, sorry, in god we trust
In god we trust, I love you, I love you
E mesmo a recitação do ABC, quando chega em B I, BI, volta à expressão estrangeira, Baby:
Lá no sertão, pros cabôco ler
Tem que aprender outro ABC
É bê-a-bá, é bê-é-bé
É bê-i-bi, oh baby
É bê-i-bi, oh baby
Seguindo nesse contexto de introdução de línguas, hábitos e mercadorias estrangeiras na canção e na poesia brasileiras, é digno de nota que, em edições mais recentes de Verdade tropical, Caetano corrija o equívoco histórico segundo o qual entre as diversas inovações de ‘Alegria, alegria’ estava a primeira menção à Coca-Cola na canção brasileira. Isto porque, antes de ‘Alegria, alegria’, Luiz Gonzaga já cantara um verso de Zé Dantas em que se fala de um jumento tomando não apenas uma, mas vinte Coca-Colas. Essa imagem absurda está na surrealista ‘Siri jogando bola’ – e me parece muito mais significativo que a primeira menção ao refrigerante apareça associada a um jumento, ao mundo rural que Gonzaga representava, e não ao cenário urbano e moderno de canções como ‘Alegria, alegria’ ou mesmo ‘Baby’.
Ao pensar na entrada de Luiz Gonzaga no repertório popular das rádios brasileiras, Durval Muniz afirma que o cantor e sanfoneiro pernambucano instaurou ali – sobretudo através do seu sotaque – um novo regime de escuta no país (o que significa, afinal, que se instaurou um novo regime de fala no país). Quem está minimamente familiarizado com a trajetória, a obra e o pensamento de Gonzaga sabe que nenhum dos seus passos é aleatório ou fruto do mero acaso. Sua carreira se constituiu como um projeto – no qual a formulação de uma região foi o ponto central. É dessa consciência, por certo, que nasce o ‘ABC do sertão’, que é um exemplo bem paradigmático dessa alteração da escuta e da fala nacionais por tematizá-la em sua letra – nesta canção, a diferença da língua lá do sertão é que está no centro. O poeta e o cantor, aqui, atuam como se fossem professores, alfabetizando os ouvintes do Sudeste, informando-os das diferenças linguísticas existentes entre os dois Brasis, o do Sul e o do Norte. De fato, ainda é assim que, ao menos na Bahia, se ensina e se aprende o ABC, e foi assim que eu mesmo aprendi: a letra L é lê, a letra J é ji, a letra S é si, a letra M é mê, a letra N é nê, o R é rê, o F é fê, etc. A lição é claramente endereçada ao ouvinte do Sul, que está travando contato com o estranho e estrangeiro, visto que esse ABC sertanejo é qualificado como ‘outro’ – sendo, portanto, desviante da norma, que seria a norma sulista.
O ‘ABC do sertão’ encara o tema da alfabetização por um viés cômico e se enquadra, também, numa tradição regional de criações poéticas, explorada sobretudo no âmbito do cordel e seus inúmeros ABCs dedicados a tantas figuras e temas (Lampião, Lucas da Feira, os direitos do trabalhador, o preguiçoso, a cachaça etc.). É curioso que manifestações populares, eminentemente orais, tomem para si a questão do letramento, sobretudo se se pensa na sua posição dentro do quadro estabelecido pelas culturas letradas.
Utilizando-se de um termo de Bernard Mouralis, a pesquisadora Jerusa Pires Ferreira propõe que a poética do cordel seja lida como uma contraliteratura, 'no sentido em que atende às necessidades de informação e de entretenimento (e eu acrescentaria a noção de prazer do texto) daqueles que foram excluídos do saber institucional'. A teórica lembra ainda que, para Mouralis, 'é suscetível de entrar no campo das contraliteraturas todo texto que não é percebido nem transmitido a um momento dado da história como sendo a Literatura'. Neste ponto, em que surgem termos como contraliteratura e outro abc, a reflexão deve se voltar às questões em torno da formação da cultura letrada e do saber institucional no Brasil e, possivelmente, na América Latina – de modo a esclarecer uma pergunta fundamental: por que é no âmbito da canção (e do cordel), portanto dos textos colocados fora da Literatura, que a poética migrante nordestina se fundamenta e se amplia?
A migração é, obviamente, um dado constituinte da vida da classe trabalhadora (todo migrante é sobretudo, como define Abdelmalek Sayad, uma força de trabalho), tradicionalmente alijadas da cultura letrada e dos seus signos (letras, códigos escritos, alfabetos) e objetos (livros, cartilhas, impressos). Historicamente, a relação delas com a literatura tradicional, editada e publicada em livro, é praticamente nula – por um longo tempo, aliás, e na imensa maioria dos casos, seu acesso já se encontrava barrado por conta do analfabetismo, da impossibilidade total de leitura, de acesso àquele código. Logo, seus modos de criação e fruição linguística e poética se concentravam, obviamente, na esfera da oralidade
Em entrevista concedida ao programa Roda Viva, em 1993, Tom Zé, refletindo sobre os motivos dos grandes nomes da tropicália terem vindo de cidades do interior da Bahia, se refere ao fato de, ainda criança, ter ouvido seu pai e sua mãe discutindo se ele deveria ou não ser alfabetizado – visto que, segundo ele, ali, no agreste da Bahia, em Irará, algumas pessoas tinham aprendido a ler e a escrever e isso não servira pra absolutamente nada, pois a cultura e a história da região aconteciam oralmente. Nos termos de Tom Zé, se vivia ali num mundo pré-Gutemberguiano, sem impressos, sem letras, sem livros. Seria absurdo supor, no entanto, que, por não estarem inseridos no mundo dos impressos, das letras, dos livros, aquelas populações estivessem alheias à poesia e as suas formulações. Aqui, então, é fundamental livrar-se daquele ‘preconceito literário’ bem definido por Zumthor, e do qual ele mesmo se liberta por meio do seu contato com a poesia medieval, realizando ‘uma tarefa de desalienação crítica’, na qual o que se tem ‘de eliminar logo é o preconceito literário. A noção de "literatura" é historicamente demarcada, de pertinência limitada no espaço e no tempo: ela se refere à civilização européia, entre os séculos XVII ou XVIII e hoje. Eu a distingo claramente da idéia de poesia, que é para mim a de uma arte da linguagem humana, independente de seus modos de concretização e fundamentada nas estruturas antropológicas mais profundas.’
No caso da poética dos migrantes nordestinos, que exige do público uma constante tarefa de desalienação crítica, as relações com a escrita são ilustradas e desenvolvidas tanto pela atuação de determinados autores ligados ao livro (seja migrando para a canção, como fazem Torquato e Capinan, seja inserindo o tema, ainda que timidamente, no próprio livro, como faz Gullar, que também escreveu algumas letras para canções) quanto pela entrada da ideia de escrita no âmbito da canção – algo que se realiza, sobretudo, através da tematização e da emulação da escrita de correspondências. A poética da migração nordestina é, também, uma poética de missivas.
Num texto chamado ‘Da mensagem oral à mensagem gravada – a comunicação com o ausente’, Sayad faz uma longa investigação e uma interpretação, no âmbito da comunidade imigrantes estabelecidas na França, dos meios de comunicação com os familiares e amigos que permaneceram em seus países de origem. Essa comunicação forma um sistema complexo, que Sayad vai revelando em seu ensaio: 'Todo grupo dispõe a todo momento, para poder comunicar-se com seus membros ausentes (ou seus emigrantes), de um conjunto de instrumentos que constituem um sistema: mensagens orais (e às vezes escritas) entregues a intermediários encarregados de levá-las a seus destinatários, cartas encaminhadas pelo correio e, última a chegar, a mensagem gravada numa fita cassete. Essas diferentes técnicas conhecem uma série de variações que, em cada caso, são função, por um lado, dos agentes envolvidos pela operação (autores da mensagem oral ou escrita; mensageiros que são seus portadores; escritores das cartas que serão entregues ao intermediário que as transmitirá ou que serão enviadas por via postal; destinatários das mensagens e das cartas; e, muitas vezes, leitores e intérpretes das cartas etc.), bem como a soma de interesses, materiais e expressivos - interesses socialmente determinados -, que eles podem ter por determinada forma particular de mensagem ou de carta; e, por outro, do lugar que cada instrumento ocupa, num dado momento, no conjunto dos meios de comunicação disponíveis entre o grupo e seus emigrantes'.
A tradição da poética migrante nordestina não passa ao largo desse sistema – tanto participa dele, com a música sendo, em âmbito cultural, mais amplo, um modo de comunicação entre ausentes e presentes, quanto o aborda tematicamente. Aproveitando a imagem do ABC e das letras, vale voltar a uma canção de Luiz Gonzaga e Zé Dantas chamada ‘A letra I’, cujos versos e títulos são importantes nesta discussão:
Vai cartinha fechada
Não deixa ninguém te abrir
Aquela casa caiada
Donde mora a letra I
Embora não seja uma das composições mais célebre de Gonzaga e Zé Dantas, ‘A letra I’ é uma das primeiras manifestações da entrada da escrita e da missiva na canção migrante. A certa altura do seu ensaio, Sayad observa que 'Ao contrário da mensagem oral que supõe um grupo social relativamente bem integrado e, em seu seio, uma grande familiaridade nas relações, quando não uma cumplicidade entre os diferentes membros (e não apenas entre as partes da mensagem), a carta escrita é (ou quer ser) mais individualista; ela aparece como um ato muito mais pessoal, um ato "privado" mesmo se terceiros, aquele que escreve a carta para o remetente e aquele que a lê para o destinatário, vêm a se interpor nessa relação. À carta está associada, quer se queira quer não, a intenção de "segredo"'. Veja se não é justamente isso que ‘A letra I’ encena em seus versos e até mesmo antes disso, em seu título cifrado (o I, aqui, se refere ao nome de Iolanda, esposa de Zé Dantas).
'A letra I' abre um topos, que seria reformulado e aprofundado por uma série de canções que se enquadram numa tradição de refletir sobre ou de emular, em sua forma, as correspondências entre migrantes. Em grande parte dessa poética, o poema ou a canção são pensados e escritos, eles mesmos, como uma mensagem a um destinatário que ficou no Nordeste. Essa prática tem como consequência uma mescla de registros: as fórmulas típicas da correspondência escrita, por exemplo, aparecem em versos de canções. Ao analisar as cartas dos imigrantes, Sayad observa que a maioria delas é feita '(...) de fórmulas estereotipadas’, com as cartas sendo marcadas por ‘uma forma extremamente condensada’ – ‘conteúdo e forma’, segundo o sociólogo, ‘demonstram essa indigência, traduzida por certas fórmulas que se tornaram rituais'. Essa mescla de registros, ao tocar no texto poético, causa estranhamentos de muito interesse (que vão longe da 'indigência'), como aquele que marca ‘A saudade me mata’, de Ederaldo Gentil, samba composto como uma carta:
Doze de março chuvoso de setenta e três
Que esta lhe encontre
Em gozo de felicidade
Se não escrevi há mais tempo
Foi o próprio tempo que não me deu tempo
Hoje lhe escrevo contando minhas novidades
A esquisitice aí, acredito, está em escutar um canto com marcas das fórmulas típicas das correspondências: a indicação das datas, a gentileza formal que abre o escrito etc. Mais pro final, ouve-se ainda um ‘Abraços, ponto final’ – algo que parece indicar que a carta cantada por Ederaldo Gentil, na verdade, está sendo ditada para que outro a escreva. O mesmo processo, que lega a escrita da carta aos especialistas na técnica da escrita (para usar termos de Sayad), parece indicado no ‘Recado pro pessoal lá de casa’, de Raimundo Sodré, em versos como ‘Como eu mando dizer toda vez/ Nas cartas fartas de amor/ Que eu mando pra vocês’.
Mandar recados ou mensagens orais através de viajantes em retorno para o Nordeste (como parece ser o caso desse recado de Sodré) foi também uma prática comum. As versões mais tardias de ‘Respeita Januário’, em que Gonzaga narra o seu retorno para a casa do pai, 18 anos depois de ter fugido de lá, são exemplares disso. Nelas, Gonzaga chega à noite na casa de Januário, fingindo ser outra pessoa, justamente alguém que vem com um recado enviado pelo filho dele, junto com um pouco de dinheiro vindo também desse filho migrante. Essas versões interessam para pensar um movimento feito por Luiz Gonzaga, ao longo da sua carreira, no rumo das narrativas. Um disco como Volto pra curtir, por exemplo, tem quase metade do seu tempo preenchido com a contação de histórias da sua vida, sobretudo da sua vida de viajante, sobre o som mais baixo da banda – quase como se encarnasse aquele tipo de narrador viajante descrito por Walter Benjamin.
No que diz respeito a essa poética de missivas, a essas correspondências poéticas, talvez o trabalho mais emblemático seja o álbum Correio da Estação do Brás, de Tom Zé. Como se sabe, o Brás foi e ainda é, em menor medida, um distrito (situado numa região central de São Paulo) muito associado às comunidades de nordestinos migrantes, pois inclusive era lá, em sua estação, que chegavam inúmeros ônibus, trens e caminhões vindos do Norte. Na contracapa do LP de Tom Zé, há um pequeno texto que vem muito a calhar para tudo o que se discute aqui, no qual se lê o seguinte: ‘Brás (São Paulo - Capital), entre Mooca, Belenzinho, Pari, no começo da Av. Celso Garcia, do seu lado direito, foi inicialmente região onde se concentrou a colônia italiana. Hoje uma população preponderantemente nordestina. Seu aspecto é de cidade do interior da Bahia ou Pernambuco em dia de feira. Sotaque nordestino, jabá, maniçoba, sarapatel, carne de sol, farinha de copioba, puxa, quebra-queixo, caçuás, girimuns, fê, guê, lê, mê, nê’. No texto, como se vê, se destaca tanto os traços gastronômicos típicos de uma feira nordestina quanto a característica linguística dos feirantes e dos migrantes que circulam por ali, indo também, por fim, ao outro ABC.
Na canção que dá título ao disco (que às vezes costuma ser referida também como ‘Feira de Santana’), percebe-se que o Correio, na verdade, é o homem que viaja para Feira de Santana e que voltará daqui algumas semanas com as respostas. É ele quem assume essa função. Tornar-se Correio é, segundo Sayad, uma das obrigações dos emigrantes que, por acaso, viajem de volta (como o próprio Gonzaga fingindo ser outro para Januário). Esse viajante da canção de Tom Zé está disposto a levar de tudo: pacotes, cartas, recados orais. É contemplada, ainda, a possibilidade da correspondência não encontrar seu destinatário e precisar voltar, salientando-se aí um certo imperativo ou compromisso ético daquele que assume a função de mensageiro (‘Palavra de homem racha/ Mas não volta diferente’) – o papel que ele exerce na comunidade exige essa retidão e certa discrição também, visto que, entre os envios, devem ir coisas variadas como quantias de dinheiro, notícias embaraçosas, recados desgostosos, etc.
'A carta', faixa seguinte, dá seguimento ao tema da correspondência, mas parece se situar numa outra esfera, aquela da intimidade e do segredo que, segundo Sayad, marca justamente a diferença entre os dois meios de comunicação entre os emigrantes e aqueles que não partiram (é verdade que o mensageiro da primeira música, de 'Correio da Estação do Brás', também se dispõe a levar cartas, mas a sua condição de ser um homem de recados, um viajante incumbido de levar e trazer de volta tantas coisas, entre elas mensagens e recados orais, coloca-o numa posição de homem público, de alguém cuja função é primordial para a manutenção dos laços mais amplos de toda uma comunidade e de toda uma cultura). ‘A carta’, por sua vez, é uma conversa amorosa entre um casal, num tom intensamente erótico (coisa de três anos atrás, tive a oportunidade de ver e ouvir Tom Zé interpretando essa música ao vivo, num concerto que ele fez num teatro, e achei a sua performance impressionante; esse andamento da canção, que vai num crescendo, de um desejo melancólico de alguém saudoso até esse galope um tanto erótico, vindo dessas imagens culinárias e animais, era acentuado pelo destaque que Tom Zé dava à sua respiração, ali, ao vivo, suspirando muito alto, e por uma série de microfones instalados em sua roupa, que eram batidos por suas mãos). 'A carta' é, sem dúvidas, semelhante à carta pra letra I: uma cartinha fechada. E o que essas cartinhas fechadas parecem abrir é a possibilidade de caber, nessa poética da migração, outra coisa além da saudade do lugar de origem, das turbulências de uma vida solitária numa cidade estranha, das agruras dos trabalhos subalternos – e essa outra seria a expressão da intimidade, dos dramas amorosos e eróticos, das melancolias individuais dos trabalhadores migrantes.
De todo modo, o que salta aos olhos, ou aos ouvidos, é a imagem fundamental da carta, da correspondência: em canções ou recados orais, em cartas escritas por terceiros e lidas por quartos, em meio a uma cultura eminentemente oral, o objeto escrito ocupa esse espaço ambíguo - no qual se revela muito sobre a formação da cultura e da literatura brasileira. Que se ouça, por exemplo, os versos de uma canção de Anastácia e Dominguinhos chamada 'Já vou, mãe' (gravada inclusive por Luiz Gonzaga) na qual se escreve/canta 'Vou partir/ Mas lembrarei de escrever/ Uma cartinha pois não vou aguentar/ Ficar tanto tempo/ Sem poder lhe falar/ Que seja ao menos por carta/ Mas com a senhora eu vou conversar'. Ou seja: a escrita como meio de falar, a conversa por meio das cartas, um embaralhamento entre os registros fundando uma poética que está entre o oral e o escrito, o cantado e o lido – uma poética migrante como seus poetas migrantes.
Não surpreende, portanto, que as elaborações poéticas da migração, instruídas talvez nesse 'outro ABC', floresçam e se concentrem no âmbito da oralidade. Mas é preciso lembrar, sempre: questões em torno escrita também são muito presentes na poética da migração nordestina e, mais amplamente, o acesso à leitura e à escrita parece ter sempre estado no horizonte de comunidades e classes excluídas do circuito letrado – algo notável, por exemplo, em alguns dos versos mais bonitos e tocantes do samba tradicional da Bahia, um samba que Caetano Veloso diz ter aprendido no Vale do Iguape, entre Santo Amaro e Cachoeira, e uns versos nos quais os desejos de aprendizado e de ensino são um só, revelando um senso de comum e de camaradagem profundos (são versos dos quais se tira uma lição fundamental: a camaradagem - o socialismo também - é uma ética de educação), indo muito além da ideia de acessar a leitura para simplesmente abandonar o espaço da oralidade, antes inserindo e usando a leitura como outra fonte para praticar o oral (escrever para conversar e cantar, cantar e conversar para escrever):
Vou aprender a ler
pra ensinar meus camaradas