sobre uma página de Haroldo de Campos e uma canção de Caetano Veloso

 



Em 2021 o Circuladô faz 30 anos. É capaz q seja meu disco preferido de Caetano - ao menos é aquele no qual se revela mais claramente, pra mim, as ambições bonitas que são a marca da sua trajetória. Outro dia, relendo o Verdade tropical, me demorei no capítulo chamado 'Poesia concreta', no qual Caetano descreve seu encontro e sua relação com os poetas paulistanos - e no qual também aparecem com nitidez as tais ambições, que dizem respeito à arte da palavra dita em língua portuguesa no Brasil. 

Vai-se longe nesse assunto: dos trovadores provençais até João Gilberto - tudo filtrado por Dorival Caymmi (óbvio, no caso de Circuladô, na canção "Itapuã") e, curiosamente, pelo canto nordestino. Curiosamente porque Caetano cita o artigo de Augusto de Campos em que o poeta liga o canto de João Gilberto mais a essa tradição do que aos cantores nacionalistas de protesto em alta nos anos 1960 (ouvido atento). Quem leu o livro sabe que Caetano é muitas vezes reticente e resistente às associações da canção tropicalista e também, de forma mais geral, da canção baiana ao som do Nordeste, algo natural para um baiano da capital ou do Recôncavo (eu, do interior agreste, tenho outro ouvido pra isso), e que se insurge também contra certa visão da estereotipia e da tendência sulista de enxergar um Nordeste um tanto homogêneo - coisa que perpassou a recepção inicial de Maria Bethânia, por exemplo, com a intérprete aparecendo para o Brasil enquanto cantava a canção de João do Vale (muito embora seja nela, introduzindo Gonzaga em 'São João, Xangô menino' que, pra mim, a equação fecha; e Gil são outros 500). 

De todo modo, Caetano andou pelo Nordeste em muitas composições: isso está na estrutura de 'Cajuína', como bem mostrou Wisnik; está, ainda, em 'O ciúme' - sua versão privada da relação entre Juazeiro e Petrolina; e mesmo no sotaque forjado pra aquela que eu considero ser a melhor versão da 'Asa branca', a canção da migração tornada a canção do exílio no disco de 1971. Mas é significativo por demais que no Circuladô (para além do 'Baião da penha') isso apareça via concretismo, via São Paulo, e filtrado por Haroldo, e numa canção que vê no cantador de feira do Nordeste o inventalínguas próximo do trovador provençal. 

Há mil setas e flechas saindo disso, nenhuma delas é folclorizante - todas estão amparadas num arco teso, como é teso o arco da canção popular que atinge o ouvido (ouvido também atento) de Haroldo de Campos naquela página das Galáxias, a canção popular tirada do instrumento 'feito apenas com um arame tenso um cabo e uma lata velha'. No meio da imensidão que é este livro, esta página encara, de dentro e de olho aberto, o pesadelo da 'megera miséria' e da 'mofina forma de fome'. 

O que este olho vê e nos dá a ver é uma leitura sem nenhuma mancha romântica, já que mesmo o 'popular' é aquilo que é 'popular para os patronos do povo' - formulação de quem sabe que a divisão, no âmbito da cultura, é fruto de uma divisão anterior, de classe (e que, em muitos casos - como o do Nordeste e o do Brasil - cria uma confusão entre uma ideia de identidade regional ou nacional que tende a ocultar a identificação dos papéis de cada classe no jogo de produção dessa cultura: uma delas criando as condições materiais de pobreza e expropriação, outra criando a beleza e a força poética a despeito dessas condições materiais). Neste paradigma de desnaturalização do 'popular' (e se não se canta, é popular?), o canto nordestino aparece no centro de uma galáxia por onde gravitam também instrumentos orientais e poesia medieval europeia, que um dia foi canto popular e que hoje é texto erudito. Note-se que isso põe sob outra perspectiva as eventuais acusações de que a poesia concreta ou, mais propriamente, os poetas concretos estavam marcados por certo elitismo, por um sentimento e uma postura refratárias ao popular - afinal, de que popular se fala, e o que se fala quando se fala 'popular'?

Além do pesadelo, e para ficar na obra do próprio Caetano, o olho e o ouvido de Haroldo de Campos captam também aquela força da 'gente pobre arrancando/ a vida com a mão' - mão na qual o poeta coloca tanto o instrumento de lata e arame tenso quanto o martelo, confundindo aqui os trabalhos (o da criação e o da produção), aproveitando-se da sugestiva tradição dos martelos e galopes: 'o povo é o melhor artífice no seu martelo agalopado no crivo do impossível no vivo do inviável' - é nesta série de marteladas e galopes entre o impossível (onde mesmo assim se faz) e o inviável (onde mesmo assim se vive) que o poeta desvenda a relação entre o labor e o lazer (a 'festafeira', afinal) deste povo cujo construtivismo geométrico se revela e se define na imagem de um círculo moldado a marteladas: o círculo das cirandas, ou das trocas, ou da vida comunitária, mas também da subjugação, ou da miséria, ou da fome, ou da dor - mas sobretudo o círculo dos trabalhos e dos dias cheios de luta e também de beleza (da beleza, por exemplo, das fulores).