Num certo momento de uma das suas participações (em 1999) como convidado para o centro do Roda Viva, Gilberto Gil se dirige a Tom Zé (que está ali no programa da TV Cultura como entrevistador) e recorda da chegada dos músicos, poetas e artistas do interior do Nordeste, como eles mesmos, às grandes cidades industriais do Sul, sobretudo a São Paulo, e então diz algo que é mais ou menos assim: 'A gente vinha vindo de lá, dos interiores da Bahia pro mundo, com O capital debaixo do braço, com as leituras de Marx, de tudo...' Eis aí, sem dúvida, uma descrição singular, que interessa elaborar no âmbito de uma reflexão sobre a poética da migração nordestina.
A certa altura de Viramundo, o documentário dirigido pelo também baiano Geraldo Sarno tratando da migração de nordestinos de áreas rurais para os postos de trabalho fabris e urbanos em São Paulo, o narrador informa - através da sua voz em off - que 80% desses migrantes são analfabetos. O contraste entre esse dado e a imagem de um migrante que chega à cidade com um livro debaixo do braço é central para se pensar essa poética (há ao menos outro migrante leitor, na 'Fotografia 3x4' de Belchior, que vem na viagem lendo Fernando Pessoa). Compare-se, por exemplo, esse migrante informado pelo marxismo que traz consigo O capital (ou esse outro leitor de poesia), e o migrante de 'Pau de arara', parceria entre Gonzaga e Guio de Moraes, que chega à cidade trazendo, em seu matolão, instrumentos como triângulo, zabumba, gonguê e tradições musicais como xote, maracatu e baião - mas livro nenhum.
O documentário de Sarno é acompanhado por uma canção (a forma de eleição dessa poética) dividida entre três nomes: Caetano Veloso, o compositor; Capinan, o letrista; e Gilberto Gil, o intérprete. São três nomes fundamentais no desenvolvimento e na continuidade dessa poética, já estabelecida por Luiz Gonzaga e seus parceiros de poesia como Humberto Teixeira e Zé Dantas. Caetano, como se sabe, pertencia a uma espécie de classe média baixa do interior baiano - e, embora reticente ou resistente quanto ao marxismo, era um jovem artista formado por nomes como Sartre; Gil, cujo pai era médico e cuja mãe era professora, poderia ter sua origem descrita de forma semelhante - e era o músico que, já com um diploma universitário concedido pela UFBA, vinha para São Paulo, como ele mesmo diz, com O capital debaixo do braço; Capinan, por sua vez, era, como afirma Caetano em Verdade tropical, o grande poeta revolucionário e engajado da Bahia no começo da década de 1960 ('José Carlos Capinan já era respeitado e famoso entre os universitários de Salvador antes de eu ingressar na Faculdade de Filosofia', lembra o santo-amarense).
Aqui certamente tem-se um ponto importante para se pensar a relação entre a migração de artistas e a migração de trabalhadores - e os modos como as duas se aproximam e se afastam. De toda forma, está aí um contraste que revela muito sobre a natureza política da arte e o lugar da arte tanto na divisão quanto na luta de classes, e que também abala a naturalização de uma ideia de expressão e arte popular e de povo (além de talvez confirmar, de novo, a tese de Walter Benjamin segundo a qual 'A luta de classes (...) é uma luta pelas coisas brutas e materiais, sem as quais não existem as refinadas e espirituais. Mas na luta de classes essas coisas espirituais não podem ser representadas como despojos atribuídos ao vencedor'). A poesia, no meio disso tudo, ocupa um lugar de interesse (mesmo ou justamente porque, como se verá, seja um lugar minoritário), já que a migração de autores como Torquato Neto e Capinan para música, embora eles não fossem músicos, indica a consciência de que a forma oral da canção é que era urgente naquele contexto. Num escrito de Torquato, embora falando das suas experiências com cinema, ele explicita as limitações da própria escrita, que ainda assim usa: 'Escrever não vale quase nada para as transas difíceis desse tempo, amizade' - algo que parece ecoar, para este poeta que não publica nunca um livro, aquela urgência apontada por Benjamin décadas antes, e muito longe daqui (pensando não no cinema ou na canção, mas nas formas rápidas de publicação): 'A eficácia literária significativa só pode instituir-se em rigorosa alternância de agir e escrever; tem de cultivar as formas modestas, que correspondem melhor a sua influência em comunidades ativas que o pretensioso gesto universal do livro, em panfletos, brochuras, artigos de jornal e cartazes. Só essa linguagem de prontidão mostra-se efetiva à altura do momento'.
O momento inicial de formulação da tropicália está atravessado por esse contraste entre culturas orais, ou analfabetas, e expressões letradas - que, no caso das obras de Gil e Capinan (e também no documentário de Sarno), se revela sobretudo no embate entre o pensamento marxista e as práticas religiosas (além de estar no próprio ato da eleição da canção como forma ideal). Muito embora não se possa acusar Gonzaga de ingenuidade ou de desatenção à política (ou, mais vagamente, aos 'problemas sociais', bastando ouvir sua voz cantando coisas como 'Triste partida' ou 'A morte do vaqueiro'), é por demais forte simbolicamente que ele cante e grave 'Procissão', certamente a canção de Gil mais nitidamente informada pela tradição marxista (nela, como relembra Gil, houve uma pequena participação de Edy Star).
Veja-se o que Gil fala sobre essa composição e a atmosfera dentro da qual ela surge: 'A questão da exploração do homem pelo homem, das grandes diferenças sociais, das grandes dívidas históricas, da colonização, da escravidão: era o momento em que se tomava consciência de tudo isso através dos livros, da ampla discussão no mundo estudantil, universitário; em que se passava a ter o hábito sistemático, quase imposto mesmo, obrigatório, de todos nós lermos as obras dos pensadores brasileiros de esquerda, o Caio Prado Júnior, o Florestan Fernandes, o Nelson Werneck Sodré. A releitura do marxismo a partir da realidade brasileira e a situação pós-45, de ilegalidade, do Partido Comunista. Os intelectuais comunistas e o legado que eles deixaram retomado com intensidade pela nossa geração (...)'. Fica claro, afinal, que embora a vivência sertaneja de Gil criança, em Ituaçu, também tenha participado da composição, se está ouvindo e falando de uma canção cujas origens remetem sobretudo a um ato de leitura.
Numa conversa entre Gil, Torquato e Augusto de Campos registrada no Balanço da bossa e outras bossas, o compositor baiano dizia o seguinte sobre uma fala de Gonzaga a respeito de 'Procissão': 'Falando de Procissão, ele dizia: — Puxa, Gil, como eu gostaria de ter feito essa música. Agora, você sabe, nego, uma coisa, eu não tive nem o curso primário. Você é um cara formado, você pode dizer essas coisas. Eu queria dizer essas coisas mas não sabia, eu não tinha estudo, eu não sabia jogar com as idéias. E tinha uma outra coisa. Vocês hoje reclamam, vocês falam da miséria que existe no Nordeste, da falta de condições humanas. Eu não podia, eu falava veladamente, eu era muito comprometido, muito ligado à Igreja no Nordeste.' Gonzaga, portanto, também reputa a escrita de 'Procissão' ao ato da leitura (é importante lembrar, contudo, que Humberto Teixeira, letrista com o qual Gonzaga inicia sua trajetória, era um poeta da escrita e, além disso, um médico de formação). O curioso é que mesmo dentro dessa ligação de Gonzaga com a igreja surgiu um 'protesto' significativo como 'A morte do vaqueiro', canção-símbolo de uma missa, a Missa do Vaqueiro, realizada no sertão pernambucano, e que se fundamenta também na denúncia das condições precárias da vida social deste habitante e trabalhador dos sertões: 'Bom vaqueiro nordestino/ Morre sem deixar tostão/ O seu nome é esquecido/ Nas quebradas do sertão/ (...)/ Sacudido numa cova/ Desprezado do Senhor/ Só lembrado do cachorro (...)'.
'Miserere nobis', a faixa que abre o Tropicália, é feita igualmente dentro dessa relação entre engajamento político e reflexão religiosa - algo evidente já em seu título latino e católico. Embora abra o disco e, de certa forma, o movimento, esta não é uma canção particularmente referida quando se trata do álbum. Caetano, no entanto, tem a letra de Capinan em alta conta, afirmando que nela reconhece 'o embrião da poética mineira dos anos 70: as referências católicas, as imagens nobres envolvendo um compromisso político mais pressuposto do que explicitado, a dicção solene. Num nível sempre extraordinariamente mais alto do que seus seguidores, Capinan prefigurou toda a lírica "participante" pós-tropicalista'. Essa pressuposição acima da explicitação certamente diz respeito a uma comparação com letras como 'Soy loco por ti, América', de Capinan, ou mesmo 'Procissão', de Gil.
'Já não somos como na chegada/ Calados e magros, esperando o jantar', versos de 'Miserere nobis', apontam para uma postura insubmissa cuja relação com o movimento migratório está indicado tanto na ideia de chegada quanto de magreza e fome. É importante notar que o uso da terceira pessoa do plural revelaria, aqui, tanto uma poética de movimento artístico (afinal, é um disco coletivo) quanto uma poética de massas sociais (neste caso formada pelos trabalhadores migrantes). Mais adiante, em outra estrofe, ouve-se 'Tomara que um dia de um dia seja/ Para todos e sempre a mesma cerveja/ Tomara que um dia de um dia não/ Para todos e sempre metade do pão', que são versos nos quais aquele senso de comunidade inicial se desenvolve numa ideia de justiça mais ampla, para além da insubmissão e da mera revolta.
Esse movimento interno de 'Misesere nobis', proposto por Capinan, pode ser visto em comparação e em contraste com aquele apresentado por Sarno em seu documentário: dos migrantes entrevistados ainda na saída do Trem do Norte, encabulados e sem certezas, até o migrante já estabelecido que, filmado sua própria casa, afirma já não ser nortista, mas paulista, e diz não ter vontade de se sindicalizar enquanto os sindicados se relacionarem mais com países como Rússia e Cuba do que com o Brasil. Adaptado ao modo de vida do capitalismo (tendo inclusive uma segunda casa, que lhe rende dinheiro através do aluguel) e alcançando um mínimo conforto, aquele sujeito se torna, afinal, um anticomunista (em oposição a este migrante bem-sucedido, são retratados tanto o migrante que retorna, sem chance na cidade, como também aquele que, permanecendo em São Paulo, se vê levado ao lumpemproletariado, lidando sobretudo com os restos e detritos da civilização brasileira). Mas esta figura do proletário que ascende e, de certa, termina se aburguesando, é tradicional da literatura marxista, denunciada por Lenin e pensada, no caso do Brasil, por autores como Florestan Fernandes (este, por sua vez, atento à importância desse processo no caso de um país como o nosso, no qual o trabalhador dificilmente tem qualquer poder de barganha diante do patrão). O mesmo processo é cantado, em primeira pessoa, na faixa que abre o Correio da Estação do Brás, de Tom Zé, numa letra que parece tanto reconhecer e aceitar o ponto de vista de Florestan quanto corroer o sonho de estabilidade e aburguesamento com uma ironia cruel:
Porque pra plantar feijão
Eu não volto mais pra lá
Eu quero é ser Cinderela
Cantar na televisão
Botar filho no colégio
Dar picolé na merenda.
Viver bem civilizado
Pagar imposto de renda
Ser eleitor registrado
Ter geladeira e tv
Carteira do ministério
Ter CIC, ter RG
(...)
O documentário de Sarno tem uma divisão clara entre a narração de fundo social da chegada e da trajetória dos migrantes, num primeiro momento, e a simples apresentação dos eventos religiosos e messiânicos na segunda parte do filme (apresentação que fica longe de ser simples, na verdade, pois deixa claro que está sendo feita com um olhar extremamente crítico sobre a ideia de caridade e cura pela fé). 'Miserere nobis' parece menos radical em sua crítica à religião, já que o aproveitamento do conteúdo e da forma católicas servem para representar a divisão socialista do pão ('Para todos e sempre metade do pão'), algo mais condizente com o papel de certas organizações religiosas brasileiras que passariam a trabalhar menos com a ideia de caridade e mais com o desejo de justiça social. A própria trajetória de Gil seria marcada, mais adiante, pela superação de uma interpretação radical da fórmula segundo a qual 'a religião é o ópio do povo', num processo de investigação da espiritualidade e do seu papel inclusive na luta por uma vida social mais justa.
A canção do filme (aquela com música de Caetano, letra de Capinan e interpretação de Gil - e que, até onde sei, não foi lançada em disco posterior nenhum, ficando apenas no filme mesmo) trata de tudo isso e afirma, em seu momento mais dramático: 'Desemprego e caridade/ Já nas portas da cidade/ Me esperavam pra peleja', adaptando formas tradicionais de certa poética sertaneja (como a ideia da peleja) para o ambiente urbano e para a luta ou peleja de classes. O poema de Capinan trata de tópicos recorrentes da tradição da poética migrante: a seca e a chuva, o latifundiário, a benção do pai, São Paulo como uma ilusão, a irregularidade do sono e da alimentação, a importância do trabalho:
(...)
Vem o sol embravecido
Esturrica a lavração
Dando a safra com fartura
Dá sem ter ocasião
Parte fica sem vendagem
Outra fica com o patrão
Na benção meu pai me disse
Que São Paulo era ilusão
Dia dorme, dia não dorme
Dia come, outro não
Se pra alguns tem caridade
Na lida desta cidade
Só vale ter profissão
(...)
Viramundo voltaria à pena de Capinan e à voz de Gil na canção intitulada simplesmente 'Viramundo', registrada por este último em Louvação, álbum de 1967. Canção afeita aos moldes do CPC e às inspirações e aspirações sociais do Teatro de Arena, 'Viramundo' seria interpretada por Bethânia no Arena canta Bahia, podendo ser lida e ouvida como uma composição próxima, por exemplo (ao menos no modo como Bethânia a canta), de 'Carcará', de João do Vale, embora mais explícita em seu engajamento revolucionário. Viramundo, o personagem, ousa aqui uma rima que seja uma solução:
Sou viramundo virado
Pelo mundo do sertão
Mas inda viro este mundo
Em festa, trabalho e pão
Virado será o mundo
E viramundo verão
O virador deste mundo
Astuto, mau e ladrão
Ser virado pelo mundo
Que virou com certidão
Ainda viro este mundo
Em festa, trabalho e pão
- já que virar o mundo é, afinal, provocar uma interrupção, reverter o seu andamento, o que significa fazer uma revolução, isto se, tal como na concepção de Benjamin, se entende a revolução não como um processo de continuidade que se aproxima pela aceleração, mas uma virada histórica, concepção definida por Michael Löwy da seguinte forma: '(...) a revolução não é a coroação da evolução histórica – o “progresso” – mas a interrupção radical da continuidade histórica da dominação'. A viração deste vasto mundo, tal como sonhada por este Viramundo de Capinan e Gil, é uma viração centrada em festa, trabalho e pão - a reunião, enfim, das coisas brutas e materiais com as coisas refinadas e espirituais, do trabalho e da arte tornados alimento do homem. E é, também, uma luta de vida ou morte, uma peleja que pede coragem para enfrentar tanto a vida quanto a morte - pois as duas podem ser inimigas:
Sou viramundo virado
Nas rondas da maravilha
Cortando a faca e facão
Os desatinos da vida
Gritando para assustar
A coragem da inimiga
Pulando pra não ser preso
Pelas cadeias da intriga
Prefiro ter toda a vida
A vida como inimiga
A ter na morte da vida
Minha sorte decidida
