Já quase no final de O guardador de rebanhos, há um poema em que Alberto Caeiro descreve um encontro breve com um "homem das cidades" - uma expressão que, ali no verso, serve para definir um socialista (que, na porta de uma estalagem, falava com o poeta e com quem mais esteve lá àquela altura daquele dia, no entardecer):
Ontem à tarde um homem das cidades
Falava à porta da estalagem.
Falava comigo também.
Falava da justiça e da luta para haver justiça
E dos operários que sofrem,
E do trabalho constante, e dos que têm fome,
E dos ricos, que só têm costas para isso.
E, olhando para mim, viu-me lágrimas nos olhos
E sorriu com agrado, julgando que eu sentia
O ódio que ele sentia, e a compaixão
Que ele dizia que sentia.
(Mas eu mal o estava ouvindo.
Que me importam a mim os homens
E o que sofrem ou supõem que sofrem?
Sejam como eu — não sofrerão.
Todo o mal do mundo vem de nos importarmos uns com os outros,
Quer para fazer bem, quer para fazer mal.
A nossa alma e o céu e a terra bastam-nos.
Querer mais é perder isto, e ser infeliz.)
Eu no que estava pensando
Quando o amigo de gente falava
(E isso me comoveu até às lágrimas),
Era em como o murmúrio longínquo dos chocalhos
A esse entardecer
Não parecia os sinos duma capela pequenina
A que fossem à missa as flores e os regatos
E as almas simples como a minha.
(Louvado seja Deus que não sou bom,
E tenho o egoísmo natural das flores
E dos rios que seguem o seu caminho
Preocupados sem o saber
Só com o florir e ir correndo.
É essa a única missão no Mundo,
Essa — existir claramente,
E saber fazê-lo sem pensar nisso.)
E o homem calara-se, olhando o poente.
Mas que tem com o poente quem odeia e ama?
O socialista volta a aparecer num dos Poemas inconjuntos, numa outra conversa (ou melhor, num outro discurso, porque é só ele quem fala - o poeta só ouve e somente no dia seguinte escreve, pois os dois poemas se iniciam com o mesmo "Ontem"). Os poemas - como facilmente se nota se os lemos assim, um seguido do outro - são bastante parecidos, como a ressaltar tanto a insistência do homem das cidades (agora definido como "o pregador de verdades dele") na luta social quanto a indiferença do poeta diante dessa luta (mas certamente não diante desse homem - se não isso, pra que lhe dedicaria outro poema?):
Ontem o pregador de verdades dele
Falou outra vez comigo.
Falou do sofrimento das classes que trabalham
(Não do das pessoas que sofrem, que é afinal quem sofre).
Falou da injustiça de uns terem dinheiro,
E de outros terem fome, que não sei se é fome de comer,
Ou se é só fome da sobremesa alheia.
Falou de tudo quanto pudesse fazê-lo zangar-se.
Que feliz deve ser quem pode pensar na infelicidade dos outros!
Que estúpido se não sabe que a infelicidade dos outros é deles.
E não se cura de fora,
Porque sofrer não é ter falta de tinta
Ou o caixote não ter aros de ferro!
Haver injustiça é como haver morte.
Eu nunca daria um passo para alterar
Aquilo a que chamam a injustiça do mundo.
Mil passos que desse para isso
Eram só mil passos.
Aceito a injustiça como aceito uma pedra não ser redonda,
E um sobreiro não ter nascido pinheiro ou carvalho.
Cortei a laranja em duas, e as duas partes não podiam ficar iguais.
Para qual fui injusto — eu, que as vou comer a ambas?
É sobretudo neste segundo poema que se revela o fundamento do desprezo de Caeiro pela luta, que é o fato do fundamento desta não ser certa (sua) noção de indivíduo, mas sim de sociedade, de coletividade - e, afinal, de classe. É só reparar no terceiro e no quarto versos (que são uma repetição ampliada deste outro, do outro poema: "E dos operários que sofrem"): "Falou do sofrimento das classes que trabalham/ (Não do das pessoas que sofrem, que é afinal quem sofre)". Nota-se que a questão do sofrimento é que é central aí, e que a própria concepção que Caeiro tem do sofrimento se resolve por meio do individualismo mais extremo: "Sejam como eu — não sofrerão."
Mas veja bem: do que vale discutir as concepções de Caeiro, um personagem criado por Pessoa em plena voragem da modernidade e do modernismo e que, justamente nesse contexto, é o personagem de um poeta absolutamente impossível? Claro: é perfeitamente aceitável e recomendável fazer este tipo de discussão, desde que se estabeleça, de antemão, que Caeiro (e tudo o que Pessoa escreve em seu nome) é fundado nesta impossibilidade radical, numa relação com o seu tempo que vai além do mero antagonismo programático. Se por acaso Caeiro fosse um poeta que de fato existisse em Portugal no começo do século XX e escrevesse o que ele escreveu e não pudéssemos lê-lo a partir da grandeza do teatro criado por Pessoa, o que interessaria nessa poesia? Do seu bucolismo, do seu estoicismo e da sua mansidão talvez restasse, como algo maior, o seu anti-cristianismo (o que, aliás, dificultaria a aproximação dos mais conservadores, talvez atraídos pelo socialismo posto sob suspeita desses dois poemas).
A ironia e a contradição cruzam toda a obra de Pessoa. Veja-se mesmo nesta dupla de poemas: Caeiro acusa o socialista de ser um mero pregador de "verdades dele", mas que faz Caeiro em toda a sua obra se não pregar (o pastor, sua figura de eleição, já guarda essa duplicidade) as suas próprias verdades? Afinal, diz ele, "Sejam como eu - não sofrerão" - uma afirmação que parece guardar, inclusive, um tom teológico. A grande ironia, no entanto, está no fato de que o fenômeno da heteronímia é justamente um abalo sem precedentes na noção de indivíduo, que é completamente desestabilizado enquanto unidade central de organização da experiência (inclusive da experiência social e da experiência do sofrimento): "Sejam como eu - não sofrerão". Eu quem?
Não quero dizer, com isso, que Pessoa - através da ironia da heteronímia e da contradição de Caeiro - estivesse revelando qualquer pendor para o pensamento e a prática socialistas, mas sim que elaborar, hoje, as supostas "visões de mundo" de Pessoa por meio do teatro da heteronímia é uma prática ingênua. Que parte do pensamento de direita leia Pessoa como uma espécie de proto-ancap revela apenas a estreiteza desse pensamento para lidar com obras cujos princípios vão além da mera expressão de opinião ou de "visão de mundo" - tomar estes dois poemas de Caeiro como exemplares de uma obra "conservadora" é um equívoco previsível de um pensamento incapaz de chegar à radicalidade; um pensamento que tropeça, já de saída, num erro primário: o de tomar o personagem - um personagem, neste caso, que simula um poeta impossível - pela obra inteira ou mesmo pelo autor (seria como tomar o Humanitismo como base da obra de Machado de Assis, por exemplo - e vou a Machado porque a imagem da laranja dividida em duas, que Caeiro encontra pra ilustrar sua filosofia um tanto barata, me lembra também de Jacobina, no conto "O espelho", afirmando que o homem é "metafisicamente uma laranja").
Seguindo assim, logo se tomará como exemplo do pensamento político de Pessoa até mesmo entrevistas fictícias de Álvaro de Campos, que a uma pergunta simulada por Pessoa ("Mas as forças proletárias, o bolchevismo, o radicalismo?") dá a seguinte resposta simulada por Pessoa: "Isso são mitos. Não há correntes proletárias, não há bolchevismo (nem na Rússia), não há radicalismo em parte nenhuma. Tudo isso é o avesso da plutocracia financeira, e é provadamente dirigido e financiado por ela. Não há movimento nenhum de ordem radical que não seja movido, em última causa, pelo Frankfurter Bund, ou por qualquer outro organismo derivado da Internacional Financeira, que é a autêntica internacional. Os operários são todos uns idiotas, e os seus chefes, ou idiotas também, ou loucos; todos são elementos essencialmente sugestionáveis, instrumentos inconscientes de forças de cuja existência muitos deles nem sequer suspeitam. No congresso recente das Associações de Classe inglesas (Trade Unions), foram votadas várias moções de carácter extremista; mas é singular que todas elas visam coisas que deixam livre o «capitalismo» internacional. A execução dos princípios consignados nessas moções importaria a ruína da indústria inglesa, e a do império britânico; deixaria porém de pé todas as forças e meios de acção do autêntico capitalismo, da finança internacional. É interessante este extremismo, não é?" - uma resposta sem dúvida alguma antibolchevique, mas cuja crítica à Internacional Comunista está longe de ser um elogio à Internacional Financeira (uma ironia formidável, aliás, e recheada de certo tom conspiratório bastante familiar para nós neste outro começo de século).
A propósito de tudo isso (personagens, heterônimos, ironias, autorias), gosto de lembrar do caso de uma série de poemas intitulada "Tradução de poemas gregos que não existem". A autoria dessa série não foi definida por Pessoa, o que levou muitos estudiosos a discutirem em qual corpus ela deveria entrar: Ivo Castro e João Dionísio incluíram-na no corpus ortônimo; Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas e Madalena Dine, por sua vez, incluíram-na na obra de Ricardo Reis. É significativo que as traduções falsas tenham suscitado questões em torno da atribuição de autoria - afinal, se são traduções, estas seriam obras de qualquer outro autor que não aquele que as traduz; mas, sendo falsas, elas seriam necessariamente obras identificáveis como pertencentes àquele que as escreve? Se Ricardo Reis ou Fernando Pessoa intitulassem as suas obras chamando-as de traduções que, ainda que falsas, se situariam dentro de um tipo de jogo literário, de natureza intertextual e referencial, elas não deveriam parecer isentas de traços marcantes das suas próprias obras individuais, impedindo assim a atribuição delas a eles próprios? Então não seria talvez mais justo atribuir os poemas a quem sabe Álvaro de Campos, cuja veia irônica poderia ser identificada na criação de traduções falsas de poetas antigos? Todas estas questões são, obviamente, absurdas - mas são índice do jogo heteronímico, no qual noções de individualidade são esgarçadas, a despeito de toda a teoria do gênio que Pessoa tenha porventura escrito. Questões absurdas, no entanto, são mais aceitáveis do que conclusões absurdas (como aquela de Raúl Morodo, segundo a qual Pessoa era "um anarquista utópico de direita" - pois afinal, em termos políticos concretos, ou mesmo abstratos, o que isso quer dizer? Isso mesmo: nada).
De fato, a obra de Pessoa está repleta de apontamentos sociais e políticos, a maioria deles críticos ao socialismo e ao movimento organizado dos trabalhadores (as suas afirmações mais recorrentes são nacionalistas, cheias de veleidades aristocráticas advindas de teorias anacrônicas de gênio e excepcionalidade artística, mas que estão longe de conformar uma "filosofia" que se reflete diretamente na sua obra poética). Bernardo Soares, por exemplo, afirma que "Uma pedra é mais interessante que um operário", numa ida a certa noção de natureza próxima à de Caeiro - e que, vale dizer, nem é exatamente tão distante de determinada esquerda apocalíptica atual. Álvaro de Campos, por sua vez, segue a pista da natureza e também volta à ideia recorrente de um Eu na obra de um poeta que desmonta a individualidade: "Eu, que sou mais irmão de uma árvore que de um operário", individualismo diante do social que encontra sua formulação mais precisa num verso de um outro poema, no qual o heterônimo se descreve dando esmolas:
Que bom poder-me revoltar num comício dentro da minha alma!
Mais adiante neste mesmo poema (no qual o poeta se sente "liberal e moscovita"), o leitor se depara com o seguinte verso: "Nada de estéticas com coração: Sou lúcido". Aqui se complica (e eu ia dizer se resolve, até pensar no que escreveria a seguir) ainda mais a relação entre a leitura que a heteronímia oferece de bandeja (uma leitura baseada na alta voltagem afetiva presente sobretudo em Caeiro, o pastor simples, em Campos, o engenheiro opiômano interessantíssimo, e o ortônimo, esse poeta familiar quando não escreve a Mensagem - todos eles autores de estéticas que se pode levar no coração) e uma outra, através da qual ela revela sua radicalidade e sua modernidade - e que precisa ser uma leitura lúcida e atenta, informada sobre a ironia e a contradição, que não busque ali a mera confirmação de "verdades dele". Dele quem?