Já nas primeiras páginas de Areia para engrenagens, de Allan Jonnes, há um poema chamado "História", no qual "um casal assiste abraçado/ a um pequeno desastre". O desastre, logo se fica sabendo, é "(...) o fim de um hipermercado" - e o que se segue é uma série de imagens de destruição e caos que guardam, ainda, certa comicidade:
(...)
os estilhaços de eternit
no rosto de uma criança
saqueadores de häagen-dazs
em trajes de ginástica
depositários loiros
da moral punitivista
estrando-se em ladrões
insurgindo da fumaça preta
como uma gangue de dublês
carregados de gillete prestobarba
o gerente com um revólver
ao redor dos caixas eletrônicos
e por sobre tudo um derrame
três andares de fogo
e de entretenimento
(...)
O que o casal surpreendido pela destruição testemunha é aquilo que está no título do poema: a história. Ou, mais propriamente: a história como entretenimento - que é, afinal, um modo corrente de pensá-la. É justo ler o poema por um viés positivo, apostando na ideia de que a obra reconhece a importância de um evento singular e passageiro na história de uma cidade - aquele dia em que, por algum motivo, destruiu-se um hipermercado (não faltarão motivos para isso num país marcado, em dias recentes, pela violência racista dentro de estabelecimentos desse tipo) e instaurou-se uma espécie de zona autônoma temporária tocada pela revolta (Hakim Bey de fato passeia pelo livro), uma zona capaz de atrair e desvirtuar até mesmo os membros mais ordeiros de uma classe média, transformando-os em saqueadores eventuais.
No entanto, num tempo em que, como disse, a história se conta e se vive como entretenimento (recentemente, por exemplo, um neonazista brasileiro foi descrito pelo jornal O Globo como um "fã do regime de Adolf Hitler", como se se estivesse falando de um jovem apaixonado por Harry Potter ou k-pop; e o que pensar, ainda, de séries históricas absurdas como Alienígenas do passado, de um canal que se chama justamente History Channel, cuja grade de programação também trata o nazismo como fonte de entretenimento, buscando suas profecias, suas relações com drogas etc), eu dizia: num tempo como esse, há algo além disso para ser visto neste poema. Tome-se, de início, este casal abraçado, uma figura que se tornou, nos últimos tempos, imagem chave em memes ou em torno da ideia da vida pautada por streamings, sobretudo a Netflix. Muito embora o casal do poema esteja na rua, é entretenimento que a história entrega: eles veem a queda do hipermercado (descrito como um desastre, aliás) como veriam um seriado na HBO ou um minidocumentário histórico na Netflix (ou uma sessão de CPI na Twitch).
A escolha do hipermercado como cenário que de certa forma abre o livro não é gratuita e vem cheia de implicações. A rigor, não é novidade pra ninguém que os supermercados, desde que surgiram e se popularizaram, tornaram-se centros gravitacionais tanto do modo de vida capitalista quanto do pensamento crítico que se levanta contra ele. Seu visual néon e colorido e seu ambiente familiar e pequeno-burguês foi muito explorado, na poesia, por uma figura como Allen Ginsberg, que ia ao supermercado sobretudo para provocar: lá via Whitman paquerando garotos e Lorca em meio às melancias, e também queria comprar as coisas dando em troca apenas a sua beleza. Igualmente irônico, mas já mais desencantado (pois que Ginsberg explora a visualidade caótica e enumerativa das gôndolas e prateleiras como talvez fizesse com os longos versos de Whitman), e na música, não na poesia, o The Clash descrevia um sujeito já exausto e perdido sob a acumulação em "Lost in the supermarket".
Não se trata, aqui, de fazer algum tipo de levantamento das incontáveis referências poéticas ao supermercado, e se falo de Ginsberg e The Clash é pelo fato das duas referências me tocarem pessoalmente. Em 1999, nos finalmentes do século XX, eu começava a me envolver com o punk rock e ouvia The Clash cotidianamente. Cursava então a sétima série do que se chamava ginásio, e ia me desinteressando das matérias, apenas ouvindo, ainda, a professora de História - até o dia em que, numa aula sobre o capitalismo, ela o louvou pelo fato deste ser o único sistema que lhe permitia sair de casa durante a noite e ir ao supermercado comprar aquilo que quisesse ou precisasse. Eu, do alto dos meus treze anos e das minhas recentes e caóticas leituras sobre punk rock, socialismo e anarquismo (longe da teoria, eu ia pensando nisso através de textos sobre música), achei aquilo um absurdo e formulei um comentário qualquer que, obviamente, não expressei. De todo modo, jamais esqueci disso e hoje, quando lembro, percebo que um tipo de supermercado "moderno", que ficasse aberto até altas horas da noite, sequer era uma realidade naquela Feira de Santana dos anos 1990 - de modo que aquele desejo da professora da história pelo entretenimento tipo late night do supermercado iluminado era mais algo que ela ouvira falar (ou experimentara em viagens, ou vira no cinema e na televisão) do que de fato podia viver ali no agreste subdesenvolvido da Bahia.
Esse desejo, de todo modo, se tornaria cada vez mais comum - e, afinal, se consumaria. O sonho mítico de Feira, por exemplo, sempre foi (e, de certa forma, ainda é) a construção de um shopping center que fizesse jus ao posto da cidade de maior centro urbano do interior do Norte e Nordeste, visto como algo que redimiria o município da sua origem, do seu presente e do seu destino tabaréu, permitindo que seus moradores entrassem no circuito do progresso, abandonando a imagem arcaica da feira e do comércio ambulante. Segundo Milton Santos, "Numa sociedade tornada competitiva pelos valores que erigiu como dogmas, o consumo é verdadeiro ópio, cujos templos modernos são os shopping centers e os supermercados, aliás construídos à feição das catedrais" - de modo que Feira (e quando digo Feira, quero dizer muito mais: quero dizer as cidades grandes e médias do interior do Nordeste e os subúrbios de suas capitais, espaços também da poesia de Allan Jonnes, que tinha ficado lá longe) desejava e deseja, como aquela professora de história, ajoelhar-se e louvar alguma coisa numa catedral de consumo.
A modernização historicamente atrasada e politicamente conservadora do Nordeste, cujo norte foi o consumo (ao menos para o grosso da população: suas classes médias, proletárias e subproletárias) se deu, como se sabe, sob um governo federal à esquerda e recente, já no século XXI. Sei que o salto é longo e arriscado, mas o processo (que, como se verá, repercute na poesia de Allan Jonnes, autor nascido em 1990 no interior de Sergipe, em Lagarto, e estabelecido em Aracaju) pode ser parcialmente compreendido com ajuda das análises feitas por Pier Paolo Pasolini na Itália dos anos 1970. Para ele, o triunfo da cultura de massas e da sociedade de consumo resultava na homogeneização cultural (e, indo talvez longe demais, antropológica) de uma Itália que, embora seguisse violentamente dividida em classes, agora se unificava em desejo e expressão: a rigor, já não havia diferença entre classes porque tudo se tornara uma imensa e amorfa classe média, obviamente desinteressada de ideias antigas como revolução ou socialismo.
Certa poesia recente do Nordeste parece se fazer diante de um impasse semelhante: atraída pelas inegáveis vantagens do "progresso" (afinal, como questionar a importância do acesso a bens básicos como geladeiras e celulares?), mas também desnorteada frente a uma cultura atualizada de violências contra as classes proletarizadas - que já nem se sabe se são uma miragem arcaica ou um alvo disfarçado por uma burguesia agora afeita à "cultura popular", dona de bandas, fomentadora de estilos e festas, perfeitamente adaptada ao hedonismo compulsivo e maquínico de tempos desesperados (que Pasolini também identificava em sua época e contexto). Segundo o poeta italiano, a cultura do consumo fazia com que todos quisessem ser "iguais uns aos outros segundo um código interclassista (estudante igual a operário, operário do norte igual a operário do sul) - pelo menos potencialmente, na ansiosa vontade de se uniformizarem".
Portanto: se eu disse que, no poema (ou curta-metragem) de Jonnes, há personagens de classe média (eu me referia àqueles loiros afeitos à moral punitivista e aos outros saqueadores em trajes de ginástica, voltando talvez de suas lições de yoga) que se metem no caos dos saques, eu disse isso sem garantia nenhuma além da minha imaginação - pois eles poderiam ser também figuras de classes aquém da média, poderiam ser jovens proletarizados, adultos subproletários, camponeses de passagem pela cidade etc. Simplesmente não há como saber ou garantir qualquer coisa (e é importante lembrar que a constituição de uma cultura, de uma expressão e mesmo de uma língua de classe já era algo destacado por Engels desde A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, quando diz que "a pouco e pouco, a classe operária inglesa tornou-se um povo completamente diferente da burguesia inglesa. (...) Os operários falam uma língua diferente, têm outras ideias e convicções, outros costumes e outros princípios morais, outra religião e outra política, diferentes das da burguesia").
Como eu disse, esse é um traço discernível em outros jovens poetas nordestinos, algo que já tentei perseguir na obra do baiano Ederval Fernandes (aqui girando entre a cotidianidade da violência, sobretudo policial, e justamente uma tentativa de reestabelecer uma cultura de classe discernível, uma espécie trincheira) e do pernambucano Philippe Wollney (aqui buscando evidenciar a continuidade entre violências históricas - de fundo colonial e racial, sobretudo - com sua faceta contemporânea). Há, decerto, muitos outros casos (lembro rapidamente da Natal de jovens poetas como Pedro Lucas Bezerro e Maíra Dal'Maz, da Maceió de Lucas Litrento, da dupla Feira/Salvador de Maria Dolores Rodriguez etc), alguns mais, outros menos evidentes, enfrentados de maneiras as mais diversas, já que está aí um dado da experiência social da região e não simplesmente um tema sobre o qual versejar.
As visões que Areia para engrenagens oferece, diante disso, são quase sempre sinistras (em composições algo cinematográficas, noir nordestino, como em "Abrir com as mãos uma cidade" e "Extrema unção", dois dos grandes poemas do livro), mas nunca esotéricas ou alheias (embora flertem com certo surrealismo). O poeta não se exime ou se ausenta de nada, mas seus versos (marcados pela fala, pois Jonnes aparece de uma tradição de poesia falada) não mostram qualquer aderência irrefletida. Sua posição é nitidamente crítica. Isso se nota em poemas como "A ilha de Waly", no qual o cotidiano de "quinas de ácido", "post-its coloridos", "agenda do AC/DC", "farmácias clandestinas", "valas de abortivo", "garrafas de amstel" é trazido ao poema pela via da tradução e nunca da mera reprodução (assim se pode ler, aliás, as inúmeras referências a grandes marcas, esportistas, notícias, slogans, figuras políticas e poéticas etc.):
(...)
algo como tra.ducto.r:
ou aquele que por ofício
atravessa as palavras
por um ducto para levá-las
a uma outra região
(...)
O poema, portanto, exige trabalho, é um ofício - lição fundamental para um tempo que crendo criticar ou rebaixar a poesia por meio da sua associação direta à linguagem da época (como se isso, aliás, fosse uma novidade e não uma repetição de discussões centenárias), na verdade eleva o poema à categoria de reserva natural da beleza, como se a mera transformação de qualquer coisa em verso garantisse a obra e a sublimação da violência, do trauma etc. Diante disso, Jonnes volta a Breton em "A trégua": "a beleza será convulsiva ou não será".
Mais adiante no livro, o supermercado reaparece no poema "Os investidores estão tristes":
os investidores estão tristes
os investidores estão esperneando
os investidores esperneiam brabíssimos
as autoridades do estado se afligem
os investidores estão sentados
a espernear no chão de um supermercado
Aqui, a reiteração vai conduzindo o poema a uma linguagem cada vez mais irônica, que se infantiliza de modo a revelar o tom das relações neoliberais entre Estado e burguesia - nas quais o primeiro se torna babá, pai e mãe da segunda, afinal, como bem aponta Mark Fisher, "Apesar de ostentar uma retórica antiestatista, o neoliberalismo na prática não se opõe ao Estado per se - como demonstram os esforços estatais massivos para salvar bancos e resgatar o sistema financeiro em 2008 -, mas sim, a certos usos específicos dos fundos estatais. O Estado forte do neoconservadorismo estava restrito a funções militares e policiais (...)". E não é por acaso que, no livro de Jonnes, a esse poema se siga "Os trabalhadores estão tristes", situação para a qual a justamente a polícia é convocada para lidar com a depressão:
os trabalhadores estão tristes
os trabalhadores estão esperneando
os trabalhadores esperneiam brabíssimos
as autoridades do estado se afligem
& chamam a polícia.
A tristeza é, sem dúvida, uma das figuras centrais de Areia para engrenagens. Ela aparece quase sempre relacionada ao trabalho, e é menos um adereço melancólico típico da poesia do que uma realidade depressiva que marca a sociabilidade contemporânea: ela é explicada para as crianças (no poema "Coleção primeiros passos", por exemplo), é flagrada por trás de uma série de poéticas ("Para o Maguila com carinho" vai por aí) e é definitivamente enfrentada (em seu absurdo incontornável, mas também em seu atrito - não finalizado ou resolvido - contra a vida amorosa, o sexo, o humor, a emancipação) nos versos de "Retrato para depois daqui":
um poema que me parecesse
com aquele dia em que você bateu
extraordinária em minha casa
no meio da manhã
para perguntar se eu sabia
qual o número em nossa época
era maior que o número
de desempregados
e largou por cima da mesa
o mais azul entre todos os embrulhos
de mercearia com uns tantos caramelos
duas pêras, quatro maços de cigarro
e brincou que um estoque de alimentos
era para sempre o seu item predileto
nesses casos de catástrofe
e continuou que aqueles dias
umas notícias davam que maior
que o número de desempregados
em nossa época era só o número
de pessoas infelizes com emprego
(...)
O estado depressivo dos trabalhadores já se tornou, há alguns anos, um dos focos do debate em torno da luta de classes. Curiosamente, Pasolini, nas suas intervenções da primeira metade da década de 1970 (imediatamente após as convulsões de 68, portanto) já afirmava coisas como "Uma das características principais dessa igualdade nas manifestações vitais, além da fossilização da linguagem verbal (os estudantes falam como livros impressos, os rapazes do povo perderam a habilidade de inventar gírias), é a tristeza: a alegria é sempre exagerada, ostentada, agressiva, ofensiva. A tristeza física a que me refiro é profundamente neurótica. Ela resulta de uma frustração social. Agora que o modelo social a ser realizado já não é o da própria classe, mas imposto pelo poder, muitos não são capazes de realizá-lo. E isso os humilha terrivelmente". Perceba: o que faz Pasolini aqui senão identificar traços que se exacerbariam em tempos recentes de redes sociais e ideologia empreendedora disseminada entre a classe trabalhadora - algo que só poderia mesmo redundar numa crise depressiva geral em que, como se vê no poema, até o desemprego (logo, a miséria) fica em segundo plano? Não por acaso, Fisher, em seu texto "Não prestar para nada", identifica nesse processo "um efeito e uma causa do nível historicamente baixo da consciência de classe".
Os tristes, os fracassados, os que não prestam pra nada aparecem nos versos de "Não há rituais para os que furtam", no qual Jonnes enfileira uma série de afirmações desoladas como
não há rituais para os que falham
para os que preferem não ir adiante
(...)
não há rituais para suicidas
rituais para um divórcio
para os que abandonam
seus recém-nascidos em um córrego
ou na casa de parentes
(...)
os que alternam noites de ansiolítico
com noites de derby & rum montilla
não há rituais
para os que largam a escola
rituais para o cansaço
- para no fim, ao contrário, apostar no poema como via para alguma redenção mundana, longe dos rituais:
não há rituais para imprevistos
para o que desanda
para o que fracassa
para isso há o poema.
Assim, esse poema dialoga diretamente com "Para o Maguila com carinho" (que se relaciona com um poema de José Juva, que por sua vez se relaciona com um poema de Fabiano Calixto, que por sua vez é diretamente ligado a algumas páginas de Roberto Bolaño), no qual se diz que "existe uma poética/ da organização sindical/ dos camponeses de coca na bolívia", bem como "existe uma poética do jovem engenheiro/ que descobriu no alpinismo de/ montanhas um modo/ de aproximar-se regularmente do céu/ para pedir desculpas à namorada/ que morreu no acidente de moto/ em que ele pilotava" ou ainda "existe uma poética da enfermeira/ do maguila na santa casa/ de misericórdia". Essa série de poéticas para trabalhadores, enlutados e boxeadores derrotados faz uma aposta alta na poesia, algo discernível em outros poemas do livro como "O festejo" e "Códigos sublimes" (anoto, ainda, a beleza convulsiva e compassiva, verdadeiramente solidária, do poema "Da utilidade pública", no qual o poeta se associa ao vendedor ambulante de algodão doce, um comentário formidável e bem-humorado às indagações sobre a função social da poesia).
Em poemas como estes, nos quais a poesia aparece como meio de enfrentamento (uma linguagem comparável à linguagem das programações, portanto uma linguagem a ser sabotada, e que pode sabotar), Jonnes formula sua visão sobre a arte com a qual trabalha. Não por acaso, "Códigos sublimes" reúne "programadores em java", "em PHP", "SQL" com "programadores em beckett", em "aleixo", em "bispo do rosário", em "bertolt" e, para isso, usa a linguagem do Manifesto do Partido Comunista - diante deles, pede: "uni-vos". A aposta, no entanto, não é irrestrita:
o poema em que dinamitas
a cabeça de policiais militares
dentro do terreno baldio
de um papel pólen bold
por exemplo
não te salvará de ser dócil
- é o que se lê em "Caminhoneta negra ou os passeios de Bey". Ou seja: o poeta promove um corte dentro da própria poesia - que deixa de ser uma espécie de reino unificado - e a divide, também ela, em classes. Numa delas, escritores num eventual jantar burguês são ridicularizados: "enquanto explodes tua linguagem/ para o auditório amigo/ o apóstolo waldemiro/ está na vanguarda do crime/ pelas partes escuras da cidade (...)"; numa outra, poetas trabalham mais por uma implosão, uma sabotagem, jogando um punhado de areia nas engrenagens da própria poesia: "bem-aventurados/ os que dominam a linguagem/ das máquinas para o furto/ e para a sabotagem/ dos grandes reinados/ financeiros" - e poéticos, eu acrescentaria. A linguagem da poesia de Areia para engrenagens procura promover antes numa implosão, na medida em que incorpora a vocalidade do poeta (vindo, vale lembrar, de um território marcado pela poesia falada, entoada e cantada) para contrariar aquele diagnóstico de Pasolini citado mais acima: para o poeta italiano, a partir da eleição do consumo e do modelo de vida unificado em torno da classe média havia uma fossilização da linguagem verbal evidenciada pelo fato dos jovens falarem como livros impressos; aqui, em Areia para engrenagens, o livro impresso é que é escrito como se fala, como o poeta fala.
Num território devastado por uma modernização conservadora disposta por cima de uma série de arcaísmos violentos (mantendo-se ali, ainda, todo a brutal desigualdade de classe, de raça, de gênero, de acesso aos códigos), Jonnes parece procurar um lugar para a poesia - e o encontra sobretudo na rua e na voz, que traz para este Areia para engrenagens. Quando escreve, na estrofe que encerra o livro, "que a poesia viva (...)", ele tanto qualifica certa poesia (a que é viva) quanto a impele - um tanto ao modo do "uni-vos" - para que, a despeito dos tempos, "(...) do pântano/ destes dias", ela viva, para que o poema vá para as mãos daqueles que não o poderiam possuir, mas que, uma vez detendo-o, "(...) têm no interior/ das mãos uma fábrica de ânsia/ para reverter em novo/ o movimento das coisas".