Em 2019, o poeta e tradutor André
Vallias deu ao leitor brasileiro a chance de conhecer mais profundamente tanto
a poesia quanto o pensamento do alemão Bertolt Brecht (que circula mais - e em qualquer
lugar - através da sua dramaturgia), reunindo quase 600 páginas da produção do
autor numa bonita edição da Perspectiva. Ali estão as canções, as
cartilhas, os versos que ridicularizam Hitler, os elogios ao Partido Comunista,
o registro poético da vida do proletariado alemão, as visões de um poeta em
migração e exílio constantes etc. Entre as diversas anotações e ensaios em
prosa reunidos e traduzidos por Vallias está um pequeno texto chamado
"Poetas devem escrever a verdade", que começa com uma pergunta e uma
reposta imediata e sem rodeios:
Qual é a missão do poeta nos dias de
hoje?
A essa pergunta tenho apenas a resposta: o poeta deve escrever a verdade
Isso, hoje, está longe de ser simples –
por mais que Brecht, logo em seguida, afirme que qualquer um confirmaria a sua
tese, ainda que estivesse com um livro de poemas cheio de mentiras nas mãos.
Não sei se tanto ali, em 1934, mas aqui, em 2021, uma afirmação dessa só pode
ser lida com algum desconforto – um desconforto cifrado nas três palavras
fundamentais da tese de Brecht: missão, dever, verdade. É bastante evidente,
para qualquer leitor de poesia e da sua crítica (por motivos de ignorância,
fico restrito aqui à poesia brasileira, ao menos parte dela), que essas são
palavras com pouquíssimo ou nenhum valor em seus discursos, que há décadas
tendem a um relativismo incompatível com o messianismo da missão, a disciplina
do dever e o comprometimento com a verdade. São palavras grandes demais para
uma poesia que preferiu se encontrar e se fazer na miudeza (ou, mais propriamente, na mediania - e a classe mediana é importante pra esse papo) e na ironia em tom também menor, o que certamente explica muito da sua pouca relevância recente.
Todo o oposto disso que se fez na
poesia (na poesia dos livros, entenda-se) foi assumido, por outro lado, pelo
rap nacional – cujos fundamentos artísticos, políticos e sociais se baseiam
numa verdadeira missão de libertação do povo negro e periférico brasileiro. Num
contexto artístico desse tipo (junto a um contexto social de perseguição,
genocídio e verdadeira guerra) ideias como missão, dever e verdade foram,
sempre, fundamentais. Não vão faltar versos para evidenciar isso, mas lembro
aqui de um apenas, estribilho repetido através dos anos e recorrentemente
relembrado diante daquilo que integrantes do movimento hip hop julgam como
desvios: o rap é compromisso. A reivindicação da verdade, do verdadeiro,
do real e da realidade é um traço determinante da construção do compromisso
do hip hop, numa tentativa de quebra final do elo, tomado por evidente, entre
poesia e ficção – uma quebra que em momento algum deve recair no registro
direto de subjetividades dos poetas (a representação da verdade através da relação
direta entre poesia e confissão, por exemplo), indo em direção, ao contrário,
ao outro e às sociabilidades da quebrada (simplificando, menos romantismo e
mais realismo).
Em 2021, dois trabalhos de mcs
nordestinos atualizaram essas questões, introduzindo dados novos e inesperados –
que, ainda que os dois estejam longe do mainstream e circulem
restritamente mesmo dentro do cada vez maior público de hip hop, podem e devem
repercutir já a curto prazo (pois que ocupam um espaço curioso, pouco popular mas
ao mesmo tempo altamente influente entre os outros rappers: são os célebres
favoritos dos seus favoritos). Os mcs são o baiano Vandal (autor da Phodismo
Mixtape, vol.1) e o cearense Don L (responsável pelo Roteiro para
Aïnouz, vol. 2).
Vandal, particularmente, fez da verdade
o centro da sua poética – o que o leva a constantemente se afirmar, em suas
faixas, como "verdadeiro", "Vandal de verdade", "o da
bandeira verdadeira", "realista verdadeiro" etc. Tudo isso vem
em oposição aos mcs e ao rap que "falam mentira" ou que são
"fictícios" (o que faz de Vandal um dos grandes críticos da sua
própria cultura, ciente de que um campo que prescinde da crítica é, por
definição, um campo reacionário, que tende a se conservar por meio da
repetição). O realismo, na obra de Vandal, resulta, sim, numa poética de
registro, mas a sua riqueza vem sobretudo de uma proposição de enfrentamento e
missão: trincheiras, linhas de frente, bala e fogo – são coisas desse tipo que
o mc mobiliza para cantar a sua cidade (pois é Salvador que parece mais lhe
interessar, sendo a sua poética uma poética profundamente territorializada - expandindo a já tradicional ligação entre o hip hop e o bairro). Isso é muito evidente numa faixa como "SALCITY PARTH 2"
(cujo remix de BBzão retira a agressividade da versão mais antiga do som
e a dota de um tom sombrio muito justo), na qual o mc afirma puxar "o
bonde das favela de SSA" para fazer uma espécie de chamado:
Vamo acordar pra realidade (Pra
realidade)
Bala na cara dos covarde (Dos covarde)
Realista, verdadeiro realista
Eu sou o povo, cero, fogo nos fascista
O realismo de Vandal, portanto, é um
ponto de partida – e é a partir dele que se começa a acordar, conversar e,
enfim, lutar. Seu flow, a cadência de sua voz, parece ter muito a ver
com certo efeito de verdade de suas composições, que se equilibram entre o
canto e a declamação ou, mais propriamente, o discurso (sem nunca cair no
retórico, sem nunca recorrer ao speed) – traço que me parece ter muito a
ver com o canto do samba-reggae tal como organizado pelo Olodum (é
perfeitamente possível, por exemplo, imaginar Vandal cantando "Revolta Olodum" ou “Um
povo comum pensar”, esse clássico da canção marxista-leninista brasileira). Essa escolha (que o situa numa linha do canto
afrobaiano que passa também pelo pagodão – bastando ver, hoje, as canções de O
Poeta e A Dama, além do fato de que o próprio mc traz o pagodão para os seus
trabalhos, inclusive se definindo como o novo Edcity e o novo Kannário nuns versos) faz de Vandal um dos mcs mais orgânicos e originais da cena – ao mesmo
tempo em que, para isso, ele não precise forçar relações com essa tradição. Não
por acaso o mc soteropolitano se sente tão confortável ao acompanhar o
BaianaSystem em seu trio elétrico.
A essa pergunta tenho apenas a resposta: o poeta deve escrever a verdade
Bala na cara dos covarde (Dos covarde)
Realista, verdadeiro realista
Eu sou o povo, cero, fogo nos fascista
Dia de sol, atrás da moeda, adeus Karol
E você me perguntando pelos preto de Segundo Sol
Ainda vejo minha cidade ao Deus dará
Mesmo vendo meu Elevador Lacerda em 4K
Em tempos de fake news, eu digo: "vou te amar"
Segura firme minha mão e me leva pra rezar
Aqui nós sofre com essa vida, a Bahia é linda
Eles não mataram por ninguém por isso ainda estou vivo
Minha cidade é reggae, minha cidade é rock
Gourmetizaram o rap, gourmetizaram o pagode
Tô aqui sentado vendo o que você não vê
Um dia eu conto essa verdade, mas não sei se acordo vocês
Romantizaram minha cidade com essa fake arte
E eu guerreando na favela pra morrer mais tarde
Eu sou um bom exemplo de uma vida dura
Guerreando nas trincheiras com os parceiros dessa vida curta
Não existe porta aberta, a guerra ainda não acabou
Levanta e anda minha nova Salvador
Levanta e anda que a favela ainda não conquistou
eles dizem que é mau com u
é porque eles tão mal com l
eles querem difamar Don L
(...)
O enfrentamento do fascismo e da violência do Estado (a compreensão de que isso é, sobretudo, um caso de polícia), um traço também notável na poética de Vandal, é informada por Don L por toda uma visão de esquerda e comunista mais nitidamente engajada (o mc cearense tem citado o Clã Nordestino como referência nesse sentido, o que talvez indique que a geografia e a região certamente têm algo a dizer a esse respeito também). O curioso é que é possível perceber a relação entre a nitidez da imaginação de Don L com a nitidez do realismo mais cru de Vandal – basta comparar, por exemplo, a relação entre sexo e política dos dois álbuns: enquanto Don L canta sobre trepar diante do quadro de Lenin, Vandal descreve uma cena de sexo com uma "bolsominion/ falsa moralista" (uma trepada com uma camarada versus uma trepada com uma adversária). Isso, aliás, é outro fator que demonstra o realismo da imaginação que Don L levanta contra o realismo capitalista (bem como a imaginação – no sentido de produzir imagens propriamente – realista de Vandal). Não é por acaso que Amílcar Cabral define Lenin como um realista político, descrevendo esse realismo a partir da ideia de que o revolucionário bolchevique ultrapassou "a concepção vulgar, segundo a qual a política é a arte do possível", demonstrando que ela "é antes a arte de transformar o que é aparentemente impossível em possível (tornar possível o impossível), rejeitando categoricamente o oportunismo. Assim definida, a ação política implica uma criatividade permanente. Para ela, como para a arte, criar não é inventar" – aqui se entendendo esse "inventar" certamente como descolar-se do real.
A ida a Amílcar se justifica, ainda, pelo fato de que a poesia em língua portuguesa talvez tenha tido a sua última e mais potente fase de engajamento com a ideia de realidade (implicando o poema, sempre, no processo de transformação dessa realidade) na produção dos autores envolvidos com as lutas de libertação do colonialismo português em África. O próprio Amílcar, mas também poetas e militantes como Agostinho Neto, Noémia de Sousa, Antonio Jacinto ou José Craveirinha produziram suas obras poéticas tal como praticaram a sua militância e reflexão políticas. Note-se, por exemplo, os seguintes versos de um famoso poema de Agostinho Neto, no qual o poema, para ser mais do que meras palavras, precisa justamente impelir o que se julga impossível para a realidade (tornar possível o impossível, afinal):
Um poema que não sejam letras
mas sangue vivo
em artérias pulsáteis dum universo matemático
e sejam astros cintilantes
para calmas noites
de invernos chuvosos e frios
e seja lume para acolher as gazelas
que pastam inseguras
nos acolhedores campos da imensa vida;
amizade para corações odientos
motor impelindo o impossível
para a realidade das horas;
O engajamento de Vandal e Don L (cada um a
seu modo, mas ambos comprometidos em forjar uma nova linguagem – realista –
para imaginar uma tomada das suas cidades), ademais, desvincula as suas poéticas do que
correntemente se toma por arte política em nosso tempo, uma arte que em geral
cai na imposição de um discurso panfletário de bons sentimentos por sobre o
trabalho, como se isso – a espontaneidade – bastasse para incendiar um campo
artístico conservador que rapidamente absorve toda revolta que não se
fundamente numa organização verdadeiramente crítica e política. Don L e Vandal
escrevem cientes de que um real engajamento na realidade exige um real
engajamento na linguagem (se posicionam, portanto, além dessa falsa polêmica em
torno dos limites da arte engajada e sabem daquilo que Sophia de Mello
escreveu: "Por isso a forma mais eficaz que o poeta tem de ajudar uma
revolução é ser fiel à sua poesia. Escrever má poesia dizendo que se está a
escrever para o povo, é apenas uma nova forma de explorar o povo").
No caso de Don L, o fato do disco ser um evidente fruto de pesquisa, diálogo, arquitetura e desenvolvimento artístico coletivo (o RPA 2 conta, por exemplo, com direção artística assinada por André Maleronka), além disso situando-se num projeto de trilogia, mostra a plena consciência operando para além da espontaneidade e de uma visão burocrática da arte. E superar uma visão burocrática da arte é, afinal, compreender e partir sempre da sua inevitável relação com a política e a sociedade do seu tempo bem como se posicionar diante da política e da sociedade do passado (e se situar, sempre, além da propaganda para propor uma política e uma sociedade para o futuro). É um baita trabalho - e mesmo eventuais e inevitáveis defeitos, como o tamanho talvez excessivo do álbum, ganham um significado distinto: são fruto de trabalho e do risco (e poesia é risco, ainda - ou deveria ser), não de desleixo. A circularidade da obra de Vandal (marcada por estribilhos e remixes, bem como autorreferências – que vão longe da autoindulgência) segue pelo mesmo caminho.
Naquele trecho de Brecht citado no
começo do ensaio, um pouco mais adiante no texto, o poeta alemão define o que é
a verdade do nosso tempo: "A grande verdade do nosso tempo (com o
conhecimento da qual ainda não se serviu, mas sem o conhecimento da qual
nenhuma outra verdade de interesse pode ser encontrada) é que o nosso
continente está afundado na barbárie, porque a propriedade dos meios de
produção é mantida pela força. Escrever essa verdade é difícil, reconhecê-la é
difícil, encontrar e alcançar aqueles que podem fazer algo com ela é difícil.
De que serve escrever algo que mostre que a situação na qual estamos afundando
é bárbara (o que é verdade), se não está claro por que caímos nessa situação?
Precisamos dizer que se tortura porque a propriedade deve permanecer. Claro
que, quando dizemos isso, perdemos muitos amigos que são contra a tortura
porque acreditam que a propriedade pode ser mantida sem tortura (o que é
falso)". Esta é a verdade do nosso tempo
e este é o tamanho da missão da poesia do nosso tempo – uma missão assumida amplamente pelo hip hop brasileiro e de forma absolutamente nítida por Don L em
seu novo disco (a ideia de tomada, de desencarcerar os torturados pelo sistema prisional, de derrotar a polícia, de pegar em armas - tudo isso diz respeito à busca do mc por escrever essa verdade contra a propriedade). É importante destacar isso porque, como lembra o próprio
Brecht, "Por exemplo, não é falso que as cadeiras tenham assentos e que a
chuva caia de cima para baixo. Muitos poetas escrevem verdades desse tipo. São
como pintores que cobrem com naturezas mortas as paredes de navios que estão
afundando" – barcos talvez carregados com o ouro que afunda no mar, como
lembra o sample da extraordinária canção composta por Ederaldo Gentil em
"Auri sacra fames", que conta com versos impressionantes de Tasha e
Tracie.
A bandeira verdadeira de Vandal e a bandeira fictícia de Don L (que inclusive produziu uma nova bandeira para o Brasil e a exibe num dos vídeos preparados pro disco) respondem, portanto, a uma mesma luta por uma emancipação da arte, da vida e do verso brasileiros. É uma aposta alta mesmo – ao modo daquela de Brecht que envolve missão, verdade e dever (na conversa que Don L teve com o Crise Crise Crise, falou-se aqui e ali de missão e grandes desafios, por exemplo) – mas é como dizia Waly Salomão também: "Não poderemos nunca ter grande poesia sem acreditar que a poesia serve a grandes fins".