sobre as canções de Paulo Leminski e "Quem faz amor faz barulho", de Bruna Lucchesi



Num texto recente sobre um filme de Lucrecia Martel e o tango "Muchacho", arrisquei uma interpretação da história, da função e da pertinência atual do poema de amor segundo a qual ele ocupa - sobretudo através da sua união com o formato da canção popular e da música pop - um lugar determinante na organização, na expressão e na formação sentimental e política das classes trabalhadoras. Indo além, propunha a transferência (mesmo que parcial, sem exageros) de um sentido épico para esse espaço historicamente reservado à lírica (como aconteceu, por exemplo, no âmbito do dramático sobretudo a partir da obra de Brecht). Partia da afirmação de um operário francês que, em 1968, ao ser perguntado sobre a importância do amor, respondeu: "É a única aventura que nos resta". O "romantismo" da afirmação não esconde, obviamente, certo tom apocalíptico ou compensatório - afinal, é a única aventura que nos resta, a única possibilidade de aventura para a classe diante dos nossos sucessivos fracassos na tentativa de uma alteração épica do curso da história por meio de uma revolução. Tudo isso - todo o peso da afirmação do operário apaixonado mas desiludido - abre nossas vistas a uma leitura distinta da inegável popularidade e alcance do poema de amor via canção (como já ocorrera ainda antes do capitalismo, no que se convencionou chamar de trovadorismo na Europa medieval), pois possibilita leituras menos condescendentes ou taxativas no que diz respeito aos modos de relação entre arte e política, poema e panfleto etc (leituras que inclusive possam se aprofundar na pesquisa e na consideração do tema do amor na cultura poética e musical e ir além da consideração da sua face mais estereotipada, explorada pela indústria cultural por meio de fórmulas ou de slogans tolos em torno da necessidade ou da força revolucionária - mas não tanto - do amor; na real, lendo bem, dá pra perceber que um ideário - muito associado aos hippies, mas hoje com novas tendências - do amor transformando o mundo é uma aposta positiva que pouco ou nada tem a ver com a negatividade que se sente na afirmação do operário francês: para ele, a épica do amor - a épica da lírica - esgota-se nela mesma, não se trata de um meio para a aventura de transformação do mundo).

É até bom, portanto, que Paulo Leminski tenha sido tão ligado ao ideário hippie - isto porque o seu cancioneiro romântico parece assumir as propostas deste ideário sob perspectivas muitas vezes irônicas, formulando-as ao revés, descolando-se, enfim, da formatação industrial de uma ideologia de "paz e amor" (como acontece, ademais, nos grandes momentos das obras de Yoko Ono e de John Lennon, referências importantes para Leminski). Uma canção como "Valeu" é um exemplo definitivo desse movimento feito pelo poeta curitibano - afinal, trata-se menos de uma canção de paz e amor e mais de uma canção de amor e guerra, em que a cena amorosa de "dois namorados olhando o céu" se desenrola, na verdade, em visões apocalípticas, de horror (Bruna Lucchesi entraria só depois no texto, mas acho importante apontar para o fato de que a sua versão para "Valeu", muito mais barulhenta do que as outras que já ouvi, parece fazer mais justiça a essa proposta de Leminski, ao contrário de versões mais "acústicas" como a de Moraes Moreira, que apresentam a canção muito colada a uma certa ideia de "paz e amor" hippie):

Dois namorados olhando o céu
Chegam à mesma conclusão
Mesmo que a terra não passe da próxima guerra
Mesmo assim valeu
Valeu encharcar esse planeta de suor
Valeu esquecer das coisas que eu sei de cor
Valeu encarar essa vida que podia ser melhor

Valeu, valeu
(...)

É notável que há, na canção, um tom compensatório ainda mais dramático do que aquele da fala do operário francês, pois lida tanto com o fim da aventura revolucionária (a que sabia que podia e lutava para que a vida pudesse ser melhor) quanto com o fim mesmo do mundo (esta sombra apocalíptica aparece ainda em "Se houver céu" e em "Oração de um suicida", com participação de Paulo Ohana, na qual ouvimos "Quando a Terra se acabar/ Você vai chorar/ Não adianta mais/ Vendo esta Terra não compensa/ Rezando na presença/ De um gigante cogumelo// Teu retrato é poeira/ Luminosa nebulosa/ Brilha tanto e ninguém vê/ Era um mundo tão bonito/ Caprichado de milagres/ Deus gostava de florir"). Me parece óbvio, ouvindo "Valeu", que a conclusão de que apesar de tudo ainda assim, de fato, valeu e vale a pena se deve à experiência amorosa em que os dois estão envolvidos, ela sim, ainda, uma aventura possível (e a alusão ao planeta encharcado de suor, ao que diz respeito: ao suor dos corpos envolvidos na trama amorosa e sexual ou dos corpos na lida do trabalho?). Particularmente, e mesmo porque sou um otimista, tendo a não confundir a proposta de Leminski com mero niilismo - digo isso porque, para mim, uma proposta contra-ideológica situada no meio mesmo do terreno onde se criava e alimentava a ideologia já exige uma atenção e um entusiasmo (um sentido de aventura, afinal) dos quais o niilismo não dá conta. Tudo isso, a meu ver, evidencia a importância do cancioneiro e do pensamento de Leminski para os nossos dias de confusão poética, musical e ideológica (foi ele, junto com poucos nomes como Augusto de Campos, Torquato Neto, Capinam, Alice Ruiz e Waly Salomão, que melhor entendeu, como poeta, as relações entre poesia de livro e canção no Brasil, livrando a conversa da inútil pergunta "letra de canção é poesia?" e levando o foco para outro ponto da questão, considerando-a historicamente - pensando na origem da lírica, ou mesmo no trovadorismo - e socialmente, situando-a no debate em torno do letramento e das formas de circulação da poesia num país desigual como o Brasil, dando a entender que não se trata de pensar em hierarquias, mas em diversidade de registros).
 
É por isso que acho fundamental o trabalho feito por Bruna Lucchesi com seu disco Quem faz amor faz barulho (vindo do bravo selo Pequeno Imprevisto), reunião de 12 canções de Leminski, quase todas elas canções de amor (vai ver é esse o barulho que faz quem faz amor, como está no título), porque mostra a atenção renovada que a obra do poeta pode receber de novas artistas ligadas à tradição da canção, mas também atentas às possibilidades que a poesia dos livros abre para a poesia das canções (não por acaso a primeira vez em que ouvi Lucchesi ela estava cantando poemas de Ledusha, e no mesmo evento - de lançamento do Disco no risco - estava também Gustavo Galo, outro nome da música muito ligado à poesia do livro; há alguns nas novas gerações, como o próprio Vitor Wutzki, que participa do álbum de Lucchesi). Se, por um imprevisto, o álbum alcançar o mesmo nível de sucesso e circulação da recente edição completa da poesia de Leminski feita pela Companhia das Letras, talvez aí sim tivéssemos uma visão mais ampla e crítica da obra do poeta (que, devo dizer, nunca me despertou um interesse particular quando me chegou em livro - já a sua canção apresentada pela voz de Lucchesi, uma voz nitidamente incrível sobre a qual não falo muito porque não sei nada de canto, me capturou como poucos discos fizeram recentemente, e não só pela voz: os timbres lisérgicos das guitarras, oscilando entre um uso sério e outro irônico, parecem entender perfeitamente o modo como Leminski lia o seu tempo).

Ao chamar atenção para o "amor" desde a escolha do seu título, Lucchesi já indica sacar que a aventura de Leminski pela canção se deu sobretudo por esse viés, o que mostra o seu entendimento acerca da variação das formas poéticas ao longo da história e das suas funções em cada contexto. Neste sentido, também foi importante que Lucchesi decidisse gravar "Live with me", poema de Shakespeare (talvez o maior nome da tradição do poema de amor) musicado por Leminski, embaralhando os registros ao máximo possível, transformando o "clássico" e "grande" poeta inglês (que, chegam a dizer, inventou até o humano!) numa linda baladinha pop-romântica. Também importa que Lucchesi cante "O velho Leon e Natália em Coyoacán", poema no qual Leminski imagina Leon Trotsky e Natalia Sedova no exílio e no calor mexicanos. Longe de Petrogrado, da neve, dos casacos e cossacos, das multidões gritando, os dois revolucionários experimentam uma espécie de cena amorosa digna de bolero, na qual ambos estão nus e um dorme e o outro sonha, o céu está limpo e o sol brilhando. Acho que nem preciso chamar atenção para o fato da canção se construir a partir da compensação amorosa de uma derrota revolucionária histórica - e de como isso se articula com as discussões anteriores sobre épica e lírica, poema de amor e política etc.

No outro texto meu ao qual aludi no começo, o tango sobre o qual escrevo, "Muchacho", é uma canção que acusa o burguês de ser incapaz de amar e, por tabela, ser incapaz de se sentir ou se tornar poeta. A experiência do amor como condição para a experiência do poema está por trás também de uma das canções inéditas que o trabalho (criativo e crítico) de Bruna Lucchesi nos oferece como meio para reler e ouvir de novo a Leminski, canção que, não por acaso, se chama "Poeta", e que julgo estar no centro do disco, mais até do que a faixa título. "Poeta" é uma balada curta, que não chega aos 2 minutos, e que certamente tem a "letra" mais simples entre todas as faixas: "Você me faz eu me sentir/ Uma pessoa tão completa/ Você me faz eu me sentir/ Completamente poeta/ Completamente apaixonado/ Vendo estrelas onde fazia um desterro danado/ Completamente apaixonado/ Vendo estrelas ao meio-dia de um dia dourado/ Completamente apaixonado". Lendo-o assim, simplesmente, parece um poema banal que, ao contrário das outras canções do disco, é pouco imagético, quase inteiramente declaratório, prosaico; no entanto, é ouvindo-o na voz de Lucchesi que se revela afinal a profundidade da canção, concentrada justamente no verso supostamente mais banal dentre todos: "Completamente apaixonado" - e essa profundidade só se revela porque a poesia é a "oscilação prolongada entre o som e o sentido", como definia o livresco Valéry, e é neste equilíbrio raro que o poeta Leminski e a poeta Lucchesi revelam sentidos novos para a obra do autor curitibano dentro de uma história da poesia brasileira que só faz sentido ser contada se se contar também uma história da canção brasileira (sem confundir ou tomar uma coisa por outra, é claro).