sobre Nadson O Ferinha

 



O trabalho daquele que se propõe a cantar seresta é sobretudo um trabalho de escutar seresta: ele é um bom intérprete na mesma medida em que é um bom ouvinte. É assim, afinal, que ele constrói um bom repertório, descobre grandes compositores, grandes canções perdidas. Se esse ouvido bom pros sons também estiver atento aos sentidos e aos entornos, ao contexto, ao seu tempo, o repertório de fato repercute e alcança o coração do público (ao se falar de seresta é permitido usar termos brega como "coração" - aliás, até Ezra Pound dizia que a poesia sempre foi a arte de alegrar o coração das pessoas). No arrocha, esse foi o caso de Asas Livres, do próprio Pablo em sua carreira solo, de Nara Costa e de Silvanno Salles, por exemplo - nomes fundamentais para que o gênero marcasse profundamente a educação sentimental da minha geração e continuasse fazendo o mesmo com as seguintes, superando os típicos estigmas da canção muito popular. Este me parece ser, também, o caso de Nadson O Ferinha, cantor sergipano que foi o artista mais escutado na Bahia e em outros estados do Nordeste me 2023. Seu disco Serestão do Ferinha (ainda que o conceito de disco seja pouco importante para o gênero) tem o mérito de pegar tanto temas clássicos do cancioneiro amoroso, como o fim do amor ("Clima frio" é uma canção absurda), o chifre (como diz o cantor em "Moça da caixa postal", ao apresentar Klessinha da Seresta: "Prepara o chifre que lá vem pedrada"), o amor não correspondido (como na linda "Só falta eu", em parceria com VF), o amor realizado ("Sete bilhões", composta pelo mineiro Thales Lessa, sem dúvida está ali pra alegrar o coração das pessoas) quanto o referencial mais contemporâneo de aplicativos (de namoro e de transportes, dialogando sobretudo com os motoristas), redes sociais ("Posta aí", atento às mudanças reais que essas redes provocaram nas formas de  se relacionar), ostentação (relativizada em "Sete bilhões"), relações fora da norma heteroafetiva (vide "Respeita quem te amou", que começa com o seresteiro pedindo aos ouvintes: "Presta atenção na letra dessa música") e bebedeira (tema clássico também, eu sei, mas recentemente mais exacerbado, que Nadson canta da seguinte forma: "Se fosse fácil de apagar o sentimento bebendo/ Não teria tanto bêbo chorando") e tratá-los com uma sensibilidade que o afasta das realizações mais estereotipadas da canção popular brasileira hoje, em grande parte dominada pela máquina do agropop, que parece tragar tudo aquilo que toca (seja arrocha, seja piseiro, seja brega). Neste ponto, seu disco me parece ter um paralelo apenas com aquilo que Eu tenho a senha, de João Gomes, representou no âmbito do forró em anos recentes, sobretudo na busca por um som e uma poesia que em momento algum se entregam às ilusões conservadoras de uma nostalgia agrária (mas também ciente de que seu lugar na cidade é incerto, periférico) - o arrocha, afinal, é fruto da região metropolitana de Salvador, dos ambientes urbanos precários em torno de um dos maiores parques industriais da região e de um dos maiores portos do país - ou de um tratamento cínico e ressentido do tema amoroso.