sobre um samba de Ederaldo Gentil

 


Ederaldo Gentil tem uma das maiores e mais belas canções da poética migrante nordestina, 'A saudade me mata', que na verdade é uma carta cantada desde o '12 de março chuvoso de 73', e que anota as diferenças percebidas por um baiano que aparentemente chega em São Paulo numa manhã fria e, ao escrever, depois, avisa e promete a quem ficou: 'Banana d'água é nanica/ Tangerina é mexerica/ Sinto falta do luar/ No mais, tudo é igual/ Abraços, ponto final/ Carnaval eu chego lá'. (A correspondência - cartas, recados, telegramas - é um dos fundamentos dessa poética, discernível já em Luiz Gonzaga, explorada por Raimundo Sodré e Dominguinhos e Anastácia e aperfeiçoada sobretudo por Tom Zé, ele mesmo tornado o Correio da Estação do Brás que ruma pra Feira de Santana cheio de mensagens e encomendas. Há um grande interesse nessas versões cantadas das mensagens escritas que são as cartas, sobretudo no seio de uma cultura eminentemente oral e pouco alfabetizada, versada no 'outro ABC' forjado por Luiz Gonzaga, mas isso é assunto para outro texto).

Porque é de Ederaldo, também, esse hino do trabalhador brasileiro chamado 'Identidade', que usa da malandragem modernista do samba (na forte tradição da cronicidade posta em verso, e cantada, em todas as suas miudezas e detalhes ínfimos - uma lição pouco ou nada professoral do que é, de fato, uma poesia antipoética, não descida do Olimpo, porque jamais esteve nessas alturas, mas nascida e criada próxima do chão) para compor um protesto triste e irônico contra a exploração, um retrato do homem 'cotidiano e tributável' (pra usar os termos de Álvaro de Campos) que adia a felicidade para depois da aposentadoria ao mesmo tempo em que repete 'que felicidade/ que felicidade' cheio de tristeza e revolta:

05342635 
É o meu número, o meu nome 
Minha identidade 
Mínimo salário é o meu ordenado 
12 horas de trabalho 
Que felicidade 
Que felicidade

Acordo sem dormir 
Faço pelo sinal 
Ouço um radinho de pilha 
Pra saber do horário 
Preparo quase nada e levo na marmita 

Vou dependurado e os sinais fechando 
Chego atrasado, é cortado o dia 
São tantos os descontos 
Que nem mesmo sei 
Me falam de vantagens 
Que eu jamais ganhei 
É o INPS, FGTS 
IRSS, o Seguro e o PIS 
Com 30 de trabalho estou aposentado 
E com mais de 70 eu penso em ser feliz

São versos esquisitos, entre números, siglas e expressões e frases feitas (acordar sem dormir, o quase nada na marmita) que, no conjunto, compõem um samba compreensível e, mais do que isso, reconhecível justamente nessa esquisitice - já que nada disso, que forma e ilustra o dia do trabalhador (o cansaço, a felicidade adiada, os termos burocráticos da dominação), ele esperaria escutar numa canção ou ler num verso. Destaca-se ainda mais, a partir dessa leitura, o título da canção, 'Identidade', que se refere ao número do RG que abre o samba de forma anti-apoteótica (sugerindo uma anulação da verdadeira identidade pessoal pelos números impessoais - os mesmos números de horas e anos roubados ao trabalhador) mas que também, por meio daquela esquisitice facilmente reconhecível, delineia, mais do que isso, uma identidade de classe entre poeta e ouvinte trabalhador. O poema de Ederaldo Gentil guarda, portanto, um duplo espanto de reconhecimento e tomada de consciência.

(Se pensarmos 'Identidade' dentro da tradição de uma poética da migração nordestina - pensamento que faz todo o sentido considerando-se tanto a filiação de Ederaldo via 'A saudade me mata' quanto a centralidade do trabalho na formação dessa tradição, como já propus aqui - vale escutá-la em comparação com 'Menina Jesus', de Tom Zé, na qual o migrante recém-instalado na cidade do Sul associa o radinho de pilha, o CIC e o RG a conquistas de cidadania, afirmando que só volta ao Nordeste, ao meio rural de onde viera, quando puder comprar 'Um rádio de pilha novo', e indo lá só a passeio, jamais pra outra vez 'plantar feijão'. Sendo assim, ficará na cidade para 'Ser eleitor registrado/ Ter geladeira e tv/ Carteira do ministério/ Ter CIC, ter RG'. Em que pese a violenta e crescente ironia que vai tomando a canção de Tom Zé na medida em que ela se aproxima do fim, o compositor de Irará registra aqui um estágio talvez anterior ao do migrante de Ederaldo - que, já firmado na cidade, percebe mais claramente os verdadeiros significados de uma cidadania reservada à classe trabalhadora, na qual os objetos de consumo como o rádio de pilha e os documentos são outra coisa que não sinais de liberdade).

'Identidade' opta por um caminho muito distinto de 'O samba do operário', de Nelson Sargento, Cartola e Alfredo Português, outra grande canção da cultura proletária brasileira - que, sem ironia alguma, protesta contra a exploração e sobretudo denuncia a falta de consciência de classe por parte do operariado que, sem se reconhecer enquanto tal, termina sendo 'escravo sem ser'. 'Identidade', a bem dizer, dificilmente se deixa definir como 'canção de protesto'. O sujeito, nela, e ao contrário do que se passa em 'O samba do operário', não está de fora, denunciando, mas vivendo e narrando a sua condição de classe (ele partilha da realidade poetizada com aquele que apenas a vive e agora a escuta, fabricando assim a identidade compartilhada) - saindo desse circuito apenas no momento em que evoca a felicidade. Neste ponto, a ironia desmonta a mera descrição e apela para que o ouvinte atue como intérprete que, ao mesmo tempo em que compreende a canção, entende também a realidade material que ela descreve em seu caráter absurdo e violento. 

Este samba, afinal, é um exemplo dos modos descobertos e criados pela classe trabalhadora brasileira para forjar a sua própria cultura, e para despertar, criar e consolidar poeticamente uma consciência de classe em meio à dominação e no rumo da libertação num futuro coletivo - ao qual, como escreveu Maiakóvski em tradução de Haroldo de Campos, é preciso arrancar alegria. E felicidade. E felicidade.